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Viagem cultural à Rússia revela nostalgia czarista no centenário da Revolução

Na terceira e última parte da Trilogia Transiberiana, o tema é a Rússia

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualização:
'Aliás' descobriu uma Rússia mudada, mais capitalista e nostálgica do autoritarismo Foto: Larissa Vassoler Wosniak

I. Fé e amor em tempos de cólera

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Irkutsk, capital da Sibéria Oriental.

De cabelos loiros que beiram o amarelo de Van Gogh e maçãs do rosto levemente salientes, a guia siberiana Elena Kopytina me revela, diante da Catedral da Epifania, que os bulbos sinuosos e coloridos das igrejas ortodoxas representam a chama das velas. 

– Um único bulbo mimetiza a onipresença de Deus; três bulbos, a Santíssima Trindade; quatro bulbos, os evangelistas Mateus, Marcos, Lucas e João. 

(Com uma piscadela, Elena me sussurra que a heresia de um quinto bulbo representaria o evangelho apócrifo de Judas Iscariotes.)

O Kremlin sob o crepúsculo Foto: Larissa Vassoler Wosniak

– Nas igrejas ortodoxas – prossegue Elena –, o púlpito fica a leste, onde nasce o Sol, e a entrada fica a oeste. Assim, os fiéis caminham rumo à pregação e ao amanhecer de uma nova vida.

(Com uma nova piscadela, Elena me sussurra que a coruja da descrença sempre levanta voo ao entardecer.) Perto dali, Elena me mostra a estátua de um casal sumamente apaixonado.

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– A túnica de mangas bem longas, a lhe cobrir as mãos, denota que o homem apaixonado era um nobre.  (Com uma terceira piscadela, Elena me sussurra que, se o nobre enamorado tivesse que arregaçar as mangas para trabalhar como um servo, ele logo deixaria de suspirar para sentir o que é o amor em tempos de cólera.)

II. Até mais ver

No Mercado Central de Novosibirsk, capital da Sibéria Ocidental, uma vendedora idosa, com os cabelos bem brancos sob um lenço vermelho, me oferece o cherbet, uma espécie de alfajor feito com frutas secas moídas e sementes de girassol, nozes, mel e gergelim. 

Estação de metrô Teatralnaya, em Moscou Foto: Larissa Vassoler Wosniak

Enquanto conversamos, os olhos da senhora Olga Titova vão ficando marejados. Quando lhe pergunto se está tudo bem, ela saca do bolso do avental um pequeno porta-retrato dourado com uma foto de um jovem fardado – um rapaz de olhos estreitos e lábios finos, testa ampla e nariz grande e vigoroso. 

– Este é Oleg, meu marido: ele se parece com você. 

– E onde ele está agora, dona Olga? 

Ela aperta minhas mãos antes de dizer que o soldado Oleg Tchernov foi um dos 27 milhões de soviéticos ceifados pela Segunda Guerra Mundial. 

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– Vá ao Museu Ferroviário de Novosibirsk – faça isso por mim. Lá você vai ver o vagão-hospital onde meu Oleg morreu – ele não suportou a amputação de uma perna sem anestesia. Боже мой! (Bozhe mói! Meu Deus!)

Ao se despedir, a senhora Titova afaga meu rosto e, em seguida, me dá um cherbet. 

– Este é o doce favorito do Oleg – ele vai ficar contente com o presente. До свидaния! (Do svidania! Até mais ver!) 

III. Stalin está vendo você!

Entro no vagão-hospital que fica no Museu Ferroviário de Novosibirsk. Quem caminha pelo vagão silencioso, entre as macas e os instrumentos médicos perfilados, precisa se esforçar para imaginar que as cirurgias traumáticas aqui realizadas implicavam a vida e a morte imediatas dos soldados mutilados após o inferno do fronte. Com sorte, doses minguadas de vodca anestesiavam as amputações – no mais, salve-se quem puder! 

E eis que os médicos, enfermeiras e moribundos do vagão-hospital transpassado por agonia e sangue eram vigiados por retratos do líder soviético Iossif Stalin, mentor de julgamentos políticos que resultaram em milhões de execuções e expurgos para campos de trabalho forçado espraiados pelos confins da Sibéria.

Sem ter como tranquilizar os soldados trêmulos antes das amputações com serras, facas e machados, as enfermeiras só faziam apelar ao terror que Stalin inspirava para (tentar) aplacar os gritos e uivos: 

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– Aguente firme, vamos! Porte-se bem, soldado: Stalin está vendo você! 

IV. Ninguém governa sem culpa?

Na fronteira entre a Ásia e a Europa, desponta a cidade de Ekaterimburgo. 

Com gestos vivazes, a guia Natália Radtchenko me explica que a Catedral do Sangue Derramado foi erigida, após o fim da União Soviética, “sobre as ruínas da casa do comerciante Ipatiev, onde, em julho de 1918, os algozes bolcheviques fuzilaram o tsar Nicolau II e sua família. Assim, a Igreja Ortodoxa Russa batizou esta catedral com o sangue inocente dos Romanov. Ademais, Nicolau II e seu filho Alexei foram canonizados após o fim do ateísmo soviético”. 

– Natália, posso lhe fazer umas perguntas? 

– Pois não.

– Com o atraso e a fome que devastavam a Rússia antes da Revolução de 1917, será que os Romanov eram tão inocentes quanto reza a hagiografia histórica pós-soviética? 

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(Natália faz um Pelo Sinal da Santa Cruz, à maneira ortodoxa, para iniciar o meu processo de excomunhão.)

– De fato, Natália, o fuzilamento dos Romanov foi uma ação atroz capitaneada por Lênin. Mas, ora, quando é que transformações históricas radicais não ceifaram vidas humanas? A república moderna não foi disseminada com a guilhotina dos franceses? A abolição da escravatura não se viu profundamente municiada pela guerra civil nos Estados Unidos? Ora, ainda que discordemos visceralmente de Lênin, é preciso dizer que há pressupostos históricos para sua medida draconiana: se as tropas monarquistas resgatassem os Romanov em meio à guerra civil que as contrapunha aos bolcheviques, os tsaristas teriam uma bandeira e tanto para impulsionar a reação à Revolução de Outubro, não? É por isso, Natália, que o revolucionário francês Saint-Just sentenciou que “ninguém governa sem culpa”. 

(Natália beija um ícone com a imagem do Cristo Ortodoxo junto à lapela de sua blusa para prosseguir com o meu processo de excomunhão.)

– Uma última pergunta, Natália: será que, a exemplo do que ocorreu com São Nicolau II, a Igreja Ortodoxa Russa canonizará Vladimir Putin, quando o novo tsar deixar o trono da presidência após a morte? 

(Natália me fulmina com os mesmos olhos que fuzilaram os Romanov.) 

V. Bode expiatório

Morei em Moscou entre 2008 e 2009 para fazer um curso de língua russa junto à RUDN, a Universidade Russa da Amizade dos Povos, e para realizar parte de minha pesquisa de mestrado sobre Dostoievski. De volta à cidade, Moscou me parece bem mais capitalista. Há 8 anos, já se discutia a remoção da múmia de Lênin do mausoléu na Praça Vermelha, mas ainda não havia rumores sobre a construção de um centro empresarial a meros 2 quilômetros do Kremlin, com arranha-céus que destoam radicalmente do estilo dos prédios aristocráticos na área histórica da capital. (Será possível imaginar Moscou como uma sucursal eslava de Chicago?)

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Há 8 anos, não havia estátuas equestres dos tsares Alexandre III e São Nicolau II cerrando fileiras com bustos de Marx e Lênin.  E eis que, nas imediações do agourento prédio do KGB, ao lado de um busto de São Alexei Romanov, filho de Nicolau II, vejo uma roda ao redor de um velho de barba bíblica. Os fiéis parecem hipnotizados pela pregação eslavófila a clamar pela “Grande Rússia comandada por Putin! Sim, agora voltamos a ter orgulho da nossa pátria! E em verdade lhes digo que a União Soviética só caiu porque seus líderes não eram russos autênticos: Lênin era judeu; Khruschov, ucraniano; e que dizer do georgiano Stálin?”

Entorpecido pela pregação eslavófila, não consigo deixar de levantar a mão para pedir a palavra. Contrariado, o velho me olha com desconfiança e apruma o ouvido com a mão direita em concha. 

– Senhor pregador, o que o senhor disse sobre os líderes soviéticos forasteiros (e potencialmente traidores) me deixou pasmo e me lembro de algo... Uma vez, em Berlim, eu ouvi um bêbado nazista latir que Hitler só não conseguira exterminar todos os judeus porque ele próprio era... judeu. 

(O velho pregador me fulmina com olhos de inquisidor.)

– E mais: há pouco, eu ouvi algo de um mendigo, senhor pregador, algo que me fez pensar sobre a sua Grande Rússia... A algumas quadras daqui, o pobre diabo gritava que, na época da União Soviética, todos tinham dinheiro, mas não havia nada nas lojas; agora, há de tudo nas lojas, mas ninguém tem dinheiro... 

(O velho e os fiéis me fulminam com olhos de quem enfim encontrou um bode expiatório.)

*Flávio Ricardo Vassoler é doutor em Letras pela USP, com estágio doutoral na Northwestern University (EUA).

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Leia a primeira parte da Trilogia TransiberianaLeia a segunda parte da Trilogia Transiberiana

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