Xeretagem de mão dupla: se Trump incentivou a espionagem russa, os Clintons fizeram igual anos atrás

Se agora Trump encoraja Putin a roubar e-mails de Hillary, em 1996 foi o marido dela, Bill, quem agiu para fraudar uma eleição na Rússia

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

Até pouco tempo atrás, as pressões de Donald Trump e dos republicanos se concentravam nos 33.000 e-mails que Hillary Clinton, quando ainda secretária de Estado do governo Obama, teria apagado, por considerá-los de interesse privado, contra a opinião de seus adversários políticos. Rixa antiga, de promissoras consequências eleitorais, a que se sobrepôs outra, interna, antagonizando os dois candidatos à indicação do Partido Democrata, Hillary e Bernie Sanders.

Caciques do partido teriam conspirado sem a menor cerimônia e de forma implacável contra a candidatura de Sanders, e as provas se espalhariam por milhares de mensagens trocadas pela internet entre os mandarins do DNC (sigla em inglês do Comitê Nacional Democrata). O senador por Vermont, com razão, estrilou; os caciques negaram ou minimizaram a sabotagem; Hillary manteve prudente distanciamento; Trump sorriu de orelha a orelha.

  Foto: CARLO ALLEGRI | REUTERS

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Em junho, o Washington Post deu o furo: dois serviços de espionagem russos, o doméstico FBS (sucessor da KGB) e o militar GRU, haviam xeretado a correspondência eletrônica do DNC. Durante um ano. Ainda no mês passado, em entrevista à ITV britânica, Julian Assange, mentor e maestro do Wikileaks, tornou pública sua intenção de vazar perto de 20.000 e-mails que dariam conta do boicote, com a explícita intenção de diminuir as chances de Hillary chegar à presidência. Às vésperas da convenção na Filadélfia, cumpriu a promessa.

Como obteve os documentos, claro, não revelou. Da boca para fora, não pretendia favorecer Trump. Não se trata, segundo ele, de preferir um ao outro. “Trump é imprevisível; Hillary não”, respondeu, “votar nela é votar por uma guerra interminável e estúpida”. Pode ser, embora em confronto não tenhamos dois candidatos ideologicamente antípodas, apenas uma pessoa normal e outra anormal.

Hillary e Assange odeiam-se mutuamente desde o primeiro vazamento do Wikileaks. Na última segunda-feira, a publicação eletrônica The Daily Beast reiterou o furo do Post, com um incômodo adendo: os e-mails do DNC haviam sido hackeados pelos russos e repassados ao Wikileaks. Assange negou.

Em vez de assistir de camarote ao imbróglio democrata e esperar, nas sombras, pelos dividendos do escândalo, Trump acrescentou-lhe outro, perfeitamente dispensável. Além de imprevisível, o topetudo milionário é um parlapatão narcisista. Numa aparição na Flórida, quarta-feira passada, não fez uso político do boicote a Sanders, que só o interessaria se o senador tivesse dado asas à sua indignação e virado a mesa na convenção democrata, mas incitou as agências de inteligência russas, chinesas “ou quaisquer outras” a roubar e divulgar os 33.000 e-mails apagados por Hillary.

Furor imediato na convenção democrata e na mídia. Acusado de “traidor”, de “atentar contra a segurança nacional”, de “conspirar com o inimigo”, de “fazer parte de um plano de Vladimir Putin para destruir o Ocidente”, e comparado ao terrorista encarnado por Lawrence Harvey em Sob o Domínio do Mal, Trump tumultuou a polêmica insistindo na tese de que Putin não gosta de Hillary nem de Obama, e sobre este já lhe teria feito, reservadamente, comentários racistas.

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De Trump, sem dúvida, o presidente russo gosta (ou diz gostar) muito: “é uma pessoa vibrante e talentosa”. Trump, cujas prédicas isolacionistas soam como música aos ouvidos do russo, replicou na mesma moeda: “Putin é um líder forte”. Milhões de pessoas se unem em Cristo; Trump e Putin parecem se unir em Mussolini. O historiador Timothy Snyder afinou os parâmetros: “Putin é a versão do mundo real da pessoa que Trump finge ser na televisão”.

O candidato republicano e seus conselheiros têm relações financeiras ou mesmo negócios com a Rússia e seus aliados. Paul Manafort, chefe de campanha de Trump, foi lobista de Viktor Yanukovych, ex-líder da Ucrânia apoiado pelo Kremlin. Carter Page, conselheiro de Trump, tem negócios com a Gazprom, a estatal do gás russa. Por essas e outras ligações e afinidades, o Nobel de economia e comentarista político do New York Times Paul Krugman pespegou em Trump o apelido de “candidato siberiano”.

Num post para o blog da New York Review of Books desta semana, Masha Geshen, especialista em Rússia e sem qualquer simpatia pelo republicano, relativizou todas essas ilações. Espião russo, Trump evidentemente nunca foi. Mas já é um herói da pós-Guerra Fria.

Oficialmente encerrada com a dissolução da União Soviética, a Guerra Fria não teve início na segunda metade dos anos 1940, quando a expressão foi criada. A rigor começou em 1918 e os americanos a iniciaram, aliados a ingleses e franceses, todos empenhados em estrangular ainda no berço a revolução bolchevique. O presidente americano Woodrow Wilson interferiu na Guerra Civil russa, enviando à Sibéria uma força expedicionária que, derrotada pelo “capitão inverno”, voltou para casa antes de disparar um tiro. Na posterior expedição aliada, batizada Urso Polar, ao cabo de dez meses de confrontos diretos, os invasores desistiram de conter in loco o comunismo soviético e assegurar o acesso das três potências ocidentais às reservas de petróleo da região exclusivamente pela força das armas.

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A espionagem soviética nos EUA principiou logo em seguida, na década de 1920, e vice-versa. Como os espiões daquelas tiras (Spy vs. Spy) publicadas na revista Mad, sempre foi um toma-lá-dá-cá. Houve de quase tudo, até acidente com um piloto americano, Gary Powers, abatido ao invadir o espaço aéreo russo. Mas ainda não se tivera notícias de interferência direta numa disputa eleitoral, na Rússia ou nos EUA, como a de agora – se é que ela de fato existiu.

Em 1996, americanos, de algum modo ligados ao governo Bill Clinton, ajudaram a reeleger Boris Yeltsin presidente da Rússia, numa eleição comprovadamente fraudulenta, manipulada pelo partido Rússia Unida, de Dmitri Medvedev e Putin, beneficiários diretos do reeleito e seus herdeiros políticos. A manobra virou capa da revista Time. “Yanks to the Rescue”, alardeava a revista. O que os ianques foram socorrer? Os planos privatizantes de Yeltsin e seu neocapitalismo oligárquico, periclitantes diante de uma possível vitória do concorrente comunista Gennadi Ziuganov, que Yeltsin só conseguiu vencer no segundo turno com 53.8% dos votos.

Se o escândalo de agora se confirmar e dele Hillary se beneficiar, a dívida de Putin com os Clintons estará saudada.

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