PUBLICIDADE

60 anos depois

Escritor imagina como estaria hoje o personagem Pedro Páramo, de Rulfo: chefe do tráfico no México

Por Juan Pablo Villalobos
Atualização:

Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal Pedro Páramo. Minha mãe me disse. E eu prometi que viria vê-lo quando ela morreu.

*

PUBLICIDADE

Íamos ladeira abaixo, ouvindo o barulho surdo do motor da caminhonete que se despencava como se estivéssemos indo para o inferno. - Olha, compadre - disse o chofer - Vê aquele morro? Agora olhe para o outro lado. Vê esse outro morro? E agora olhe lá no fundo e para trás, até onde alcança a vista. Pois tudo isso é a área que Pedro Páramo controla. - Parece que está tudo abandonado. - Não vive ninguém aqui. - E Pedro Páramo? - Faz muitos anos que mataram Pedro Páramo.

*

Era a hora em que a as crianças deveriam estar brincando nas ruas, mas nesse povoado não havia nenhum ruído. Olhei as casas vazias, invadidas pelo mato, os tiros nas paredes, marcas de incêndios e de explosões. Cheguei a uma casa. Havia uma mulher. Disse que eu entrasse e atravessamos um corredor cheio de volumes. - O que é tudo isso? - perguntei. - Coisas - respondeu -, tenho a casa cheia de coisas que deixaram os que foram embora, disseram que iam voltar, mas nunca voltaram. - Essas coisas são de Pedro Páramo? - Essas não - disse, apontando à direita, onde havia caixas empilhadas com metralhadoras -, essas são dos que estavam contra Pedro Páramo. - E estas? - perguntei, apontando onde havia uns pacotes de plástico preto, embrulhados como pacotes de droga. - Estas são de alguns que antes andavam com Pedro Páramo e depois não estavam mais, passaram para o lado dos Zetas ou nem sei mais qual. Aqui há coisas até dos soldados e dos federais, que saíram correndo no último ataque. - Que bagunça! - O mesmo inferno.

*

- O que é que está acontecendo? A mulher sacudiu a cabeça como se despertasse de um sonho. - É a caminhonete de Miguel Páramo, que anda para cima e para baixo. - Então alguém mora aqui? - Somente a caminhonete que vai e vem. Eu fui a primeira a tomar conhecimento na noite em que ele morreu. Já estava deitada quando escutei o barulho da caminhonete e então ouvi que batiam na minha janela. “O que aconteceu com você?”, perguntei, porque jorrava sangue e estava cheio de balaços. “Não sei”, respondeu, “não lembro de nada”. “Você deve estar morto, Miguel”, disse-lhe, “amanhã teu pai vai se retorcer de dor e vai querer vingança, você sabe quem te meteu os tiros?”. “Quem poderia ser?”, ele disse, “são tantos atirando que desconfio até das pedras”.

*

Este povoado está repleto de ecos. Quando você anda ouve rangidos, risos, latidos de cachorros, a música de uma festa. E vozes: - Estão esperando o carregamento na fronteira, o que vamos dizer a Pedro Páramo? - Chegaram uns novos querendo cobrar vinte por cento, mas eu disse que já demos para Pedro Páramo, de onde vamos tirar mais dinheiro? - Don Pedro, derrotaram o Tilcuate. Chegaram uns feridos a Comala. Disseram que eram das Autodefensas e que tiveram muitos mortos. Parece que encontraram com alguns que dizem que agora estão por conta própria. - A Família, os Zetas, os da Nueva Generación, agora todo mundo vem pra cá, Pedro Páramo já não controla nada. - E agora para quem vamos pedir armas, então?

*

Publicidade

Estava muito cansado, como se a alma tivesse caído no chão e eu não tivesse forças para erguê-la. Pedi licença à mulher. Ela disse que deitasse onde quisesse e desapareceu numa nuvem de pó. Deitei num canto no chão. - Não me ouve, mãe? - Onde está você? - Estou aqui, no teu povoado, com tua gente, onde você queria que eu viesse. - É melhor você levantar do chão, os vermes vão te comer aí.  Fiz um esforço e quando me dei conta já estava de pé, leve e como se meu corpo não pesasse nada. - Filho, por que você está cheio de balas?

Juan Rulfo, nos anos 50.Seu livro icônico completa seis décadas em 2015 Foto: DIVULGAÇÃO

/TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

JUAN PABLO VILLALOBOS, AUTOR MEXICANO, ESTÁ LANÇANDO O LIVRO TE VENDO UM CACHORRO (COMPANHIA DAS LETRAS)

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.