A apoteose de corpos insubmissos

O carnaval é um acerto de contas. O momento do físico contra o espírito, do desejo contra a continência. Ele desveste o que os poderes vestiram

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Por José de Souza Martins
Atualização:

Sempre houve uma certa expectativa quanto a quem será desancado ou quem será bajulado na relativa surpresa dos nossos desfiles carnavalescos e na ordem invertida que representam. O carnaval nos chegou de Portugal, como entrudo. Trouxe-nos a medieval cultura das inversões simbólicas das identidades e dos poderes nos três dias da festa. Na cultura do avesso, assimilou manifestações centradas na tensão do corpo com sua dominação social e política, vindas de grupos negros e indígenas. O carnaval tornou-se o momento da pública exposição dos acontecimentos do ano e de suas figuras à mordacidade da crítica popular ou à sua bajulação. É o momento da manifestação do corpo insubmisso, como instrumento de um discurso gestual da contrariedade. Momento em que os grandes pagam pelos desaforos feitos aos pequenos. Mas, também, hora em que o puxa-saquismo se torna monumental, na visibilidade de uma gratidão material ou política carregada de malícia. É a hora do troco, em que a força subversiva do imaginário do povo se dá a ver nos enredos dos sambas, nas cores e nas alegorias de carros e fantasias, nos desfiles de cordões e escolas de samba, no Rei Momo, monarca do faz-de-conta, o antipoder de três dias. É o momento dos fracos contra os fortes, da sociedade contra o Estado, da rua contra as instituições. O carnaval é um acerto de contas anual, o intervalo de um corrosivo tempo de deboche. Não é só o presente que cai na pancadaria simbólica dos carnavalescos. O passado inteiro está sujeito a apreciações sem cerimônia, em que nunca se sabe se a narrativa dos sambas-enredo são irônicas por intenção ou por desinformação. De qualquer modo, é sempre prudente recomendar aos estudantes que a melhor fonte do conhecimento histórico ainda é o livro. Mas é também o momento do corpo contra o espírito, do desejo contra a continência e a repressão, do proibido contra o permitido. Não é apenas feliz acaso que o nome da primeira escola de samba do Rio de Janeiro tenha sido Deixa Falar, uma insurgência contra a língua comprida e a dominante sociedade dos linguarudos, da polícia e dos comentadores da vida alheia, da "decência" oficial contra a "indecência" popular, da repartição pública contra a rua e o povo. Não é à-toa que, em carnavais de outros tempos, e hoje menos, as pessoas se fantasiassem, ou se fantasiem, de seus contrários, homem vestido de mulher, mulher vestida de homem, adultos vestidos de bebês, de "mamãe-eu-quero-mamar", mascarados vestidos de demônio nesse tempo ritual de anjos decaídos. É o embaralhamento das identidades, no vestuário e nas máscaras carnavalescas em que traços do antagônico são ressaltados para expor as fisionomias reais, do perverso, do sovina, do corrupto, do oportunista, que se ocultam nas dissimuladas fisionomias cotidianas. É a personificação crítica das alteridades que demarcam repressivamente nossa nem sempre fácil vida de todo dia. É a máscara que permite transgredir sem ser reconhecido nem ser punido. A transfiguração de cada um naquele que ele não é. É, sobretudo, o duplo sentido do dizer oculto. O carnaval é o momento mais forte e significativo de exposição da centralidade do corpo na nossa cultura, como referência problemática da realidade social. O corpo nu e natural é apenas adjetivo, apenas ponto de reparo e referência da construção do corpo imaginário e social, o corpo que pode ser "lido", situado e compreendido. Desde o nascimento, as crianças são trajadas de maneira a adquirirem a identidade que as situará no mundo, a cor da roupa, o brinco da menina, os brinquedos. Os ritos de casamento são, basicamente, ritos de fecundidade, sacralização da troca biológica de sangue entre os esposos, modo de assegurar a antecipação cultural e social dos corpos que serão gerados, simbolicamente concebidos desde antes de existirem. Nesses processos, o corpo é situado nas tensões da vida e da morte, do transitório e do eterno, do mortal e do imortal. O carnaval desveste o que os poderes vestiram. Ele é bem mais do que crítica social e política. Nele se expressam essas tensões constitutivas do humano, no pouco caso das fantasias de caveira e de demônio, na exorcização do medo e da morte, na negação do sobrenatural no corpo liberto, até mesmo no extremo da nudez em desfiles de escolas de samba. No fundo, o carnaval é um contra-rito religioso. Inscrito na véspera da Quaresma e do tempo do luto e da dor, é o tempo do desejo e da euforia, que precede um tempo de jejum e de punição ritual do corpo, um tempo de purgação da pecaminosa carnalidade do homem. Antes desse recolhimento litúrgico, a licença do carnal, não só o da sexualidade, mas também o do apetite, sujeitos às interdições rituais e à fria temperança da Quaresma. O carnaval é um intervalo cíclico de transgressão consentida, que no temporário da festa liberta o corpo desordenador e a desordem consentida que dele resulta. Não por acaso, o carnaval é o tempo da folia, da loucura e da multidão. Embora seja um intervalo no tempo herdado da liturgia religiosa, da qual muitos estão cada vez mais distantes, é no carnaval que a crise social e as mudanças de longa duração, quase imperceptíveis, se manifestam no curto tempo do desabafo. Na perspectiva desse tempo longo é possível notar que, na sua substância, o carnaval está acabando lentamente. Não só porque se torna progressivamente um empreendimento comercial sujeito a regras empresariais, que em tudo negam a insurreição livre do corpo e do desejo. Mas, também, porque no cotidiano elementos de identificação carnavalesca do corpo estão agora presentes e não só entre jovens. É muito significativo quando tatuagens e piercings, adornos corporais permanentes, se tornam cada vez mais complementos de uma nudez semi-oculta, mas proclamada. Uma negação explícita da transitoriedade ritual do carnaval e uma desconstrução do corpo submisso, uma forma de dizer que a insurreição de três dias se torna a insurreição visual de um ano inteiro - e se esvazia. * José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP

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