A armadilha eleitoral dos apelidos

'Nomes de urna' exóticos permitem que candidatos se lancem na disputa ocultando sua condição verdadeira

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Por José de Souza Martins
Atualização:

O Brasil é um estranho país em que, a pretexto de ser democrático, torna mais fácil eleger alguém para uma função política se se apresentar ao eleitorado com apelido de animal de estimação, o que ocorre com muitos dos chamados "nomes de urna", do que com o nome de gente. A lista de apelidos eleitorais esdrúxulos e de nomes vagos, que pode ser constatada em todos os municípios brasileiros na eleição do próximo domingo, é tão extensa que se pode legitimamente duvidar do caráter político das eleições brasileiras. Para nascer, para viver, para trabalhar, para casar, para procriar, para estudar, para votar, para ficar doente e até para morrer temos que ter um nome civil, registrado e legalmente reconhecido. Até o bandido precisa de um nome de gente para ser preso, processado e condenado. Menos o político, e quem quer atuar na política. É verdade que um certo número de candidatos e um número extenso de eleitos o são com o nome apropriado, de seu registro civil e de seu título de eleitor. A possibilidade legal de as pessoas se candidatarem usando apelidos permite que os eleitos o sejam mesmo para altas funções públicas sob um disfarce, uma máscara nominal que lhes oculta a verdadeira identidade e os torna conhecidos na política para serem desconhecidos no conjunto de sua condição de pessoas. São casos de dupla e desencontrada identidade que ferem, justamente, o princípio básico da política que é a transparência e a identificação de quem se oferece para a representação política. Representação quer dizer presença do ausente, atuar e falar no lugar de alguém, que no caso é o eleitor. Na cultura política da dupla identidade quem nos representa moral e politicamente: o do apelido ou o do nome oculto? O "nome de urna" é uma dessas mistificações que expressam o atraso na política brasileira. Como eleitores, nenhum de nós tem a possibilidade de, no dia-a-dia, buscar informações sobre a pessoa que se esconde por trás do apelido eleitoral, informações que nos ajudem a decidir politicamente. Somos despistados pelo apelido do candidato. Porque o apelido eleitoral fratura sua identidade. Podemos saber muito do superficial contido no apodo eleitoral, mas praticamente nada sobre o sujeito que se esconde na outra identidade, aquela que não é posta em votação. Em princípio, o apelido eleitoral é a mentira transformada em instituição política, é apenas o fragmento de uma imensa teia de interesses e procedimentos que, no geral, têm por objetivo assegurar a ordem sem progresso social e político, a preservação dos interesses estabelecidos. O voto obrigatório e subinformado por essa artimanha acrescenta componentes à farsa de uma democracia nominal que está muito longe de se constituir na verdadeira democracia representativa. São esses os andaimes do poder do atraso, o atraso que, no fundo, equivocadamente queremos e não o atraso que supostamente não podemos vencer. O Brasil tem uma longa história de refuncionalização de arcaísmos, capturados pela mentalidade interesseira e, não raro, pouco escrupulosa de uma modernidade aleijada por suas insuficiências e seu faz-de-conta. Há uma cultura do atraso que cimenta nossas estruturas políticas. Ela vem de longe, desde quando não era propriamente política. Volto ao tema dos apelidos de urna. Os apelidos têm, entre nós, raízes profundas como nominação de ocultamento da verdadeira identidade das pessoas. Foi e ainda é próprio das nossas culturas indígenas o nome como segredo e ocultamento de identidade. Só o nominador e, eventualmente, os pais sabiam e sabem o verdadeiro nome de alguém, que é a designação do seu lugar no mundo. O nome é mágico e não mero rótulo identitário, como ocorre entre os que não são indígenas. Saber o nome é capturar a pessoa. Muitas vezes, nem a esposa sabe o nome do marido. Helena Valero, brasileira do Amazonas, que foi flechada e capturada pelos índios ianomâmis quando estava com sua família na roça, cresceu e se tornou adulta entre os índios e ali casou e teve filhos, até fugir e retornar à "civilização" muitos anos depois, com os filhos adolescentes. Só ficara sabendo o nome do marido casualmente, quando ele morreu. A facilidade com que índios descidos e escravizados aceitaram o batismo e nomes cristãos tem muito a ver com a necessidade de ocultação do verdadeiro nome. Não era adesão, mas autoproteção. Ainda hoje, pelos ermos, ainda é muito comum que alguém seja conhecido por seus relacionamentos parentais, como Zé da Maroca ou Maria do João, e não por seu nome. Já entrevistei, em pesquisa, um homem adulto e casado, no Alto Paraíba, que, quando lhe perguntei o nome, teve que consultar a mãe, pois ele se conhecia apenas pelo apelido. A dupla nominação, que se difundiu com o trabalho missionário, entre índios e negros, criou de fato uma nacionalidade de dupla identidade. Hoje os ermos estão nas cidades, para onde migraram, com os resquícios da cultura de dominação colonial e escravista. O reconhecimento eleitoral do apelido dos candidatos para computação dos votos e para seu desempenho político pode ser uma tentativa de construir uma ponte entre o Brasil legal e esse Brasil marginalizado. Uma farsa, sem dúvida, para que façamos de conta que somos um país de integrados. Se isso viabiliza a participação política dos desprovidos de identidade política, ao mesmo tempo gera oportunismos nocivos à democracia, como o do candidato a vereador em São Paulo que até alterou o nome e a aparência para, usando o mesmo tom de voz, apresentar-se como filho do falecido deputado Enéas Carneiro. O "nome de urna", no caso dos apelidos de ocultamento da identidade do candidato, consagra o atraso como regente da República. O atraso votará no próximo domingo não só para eleição de prefeitos e vereadores, mas também, disfarçadamente, para deputados estaduais e federais, senadores, governadores e o próprio presidente da República das eleições de 2010. Antes da apuração dos votos, a malícia e o oportunismo já derrotaram a razão. *José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

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