A briga da China com a globalização

O país não pode simplesmente erguer um muro protetor para não ter de enfrentar os desafios que o restante do mundo é obrigado a encarar

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Por Jonathan Fenby
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Nos 30 anos desde que Deng Xiaoping pôs a China na rota do mercado, nenhum país se beneficiou tanto com a globalização. Embora Estados Unidos e União Européia tenham lucrado com a derrubada de barreiras comerciais, com a difusão dos investimentos e do conhecimento e com a livre movimentação das pessoas, foi a República Popular que registrou os maiores avanços. Hoje, quando o país entra na segunda geração da reforma econômica, os herdeiros de Deng se deparam com os desafios que surgem com a globalização. A maneira como os chineses enfrentarão esses desafios será crucial não só para a China, mas, devido a seu papel na economia global, para o restante do mundo. O crescimento da China tem sido tão espetacular, sua autoconfiança é tão grande, que é fácil esquecer quão enormes foram as mudança nos últimos 30 anos. Na maior parte dos 25 anos antes de Deng mudar o curso das coisas, em 1978, a história do país era de uma crescente debilidade econômica e política, com fragmentação social. A queda do Império Qing, em 1912, foi seguida pelo reinado dos senhores da guerra numa enorme escala, e depois o frágil governo nacionalista de Nanquim. A intromissão japonesa se prolongou da tomada da Mandchúria, em 1931, até a guerra de 1937 a 1945, e depois veio o governo brutal e desordenado de Mao Tsé-tung, concluindo com os dez anos da Revolução Cultural. Contra esse histórico, o processo iniciado por Deng após vencer a disputa de poder que se seguiu à morte de Mao, em 1976, foi bem acolhido por centenas de milhões de chineses. Naturalmente, o progresso econômico não foi acompanhado da liberalização política. E a China também não desfruta de um Estado de Direito e de responsabilidade efetiva - que exigiriam que o Partido Comunista se submetesse à crítica externa. O partido fala em encorajar a democracia interna e o primeiro-ministro Weng Jiabao diligentemente exibiu a face humana do regime quando visitou a zona do terremoto em Sichuan; o presidente Hu Jintao mostrou-se tão distendido na semana passada a ponto de responder a uma série de perguntas numa sala de bate-papo online durante visita ao website de um jornal. Grupos de especialistas debatem prescrições de "nova esquerda" e "nova direita" para o país, engendrando teorias que buscam harmonizar mais democracia com um governo comunista continuado. O fato é que não se permite nenhum questionamento dos princípios básicos que regem o controle persistente do partido. O objetivo da democracia interna é fortalecer o partido, não questionar seu monopólio. A estranha combinação de marxismo, leninismo, idéias de Mao e Deng e capitalismo dentro de uma estrutura estatal assumiu a condição do imperial Mandato Celeste. Dissidência é equiparada a subversão. O entendimento comum ocidental dos anos 90, de que o progresso econômico conduziria um país à democracia-um dos argumentos políticos fundamentais empregados pelos proponentes da globalização - foi desaprovado de modo retumbante no país mais densamente povoado do mundo. As medidas repressivas adotadas antecipando a Olimpíada, que vão da prisão de ativistas de direitos humanos e expulsão da cidade de trabalhadores de minorias étnicas até toque de recolher para bares e locais de música, evidenciam o controle nos mínimos detalhes a que o regime pretende chegar. Não existe nenhum obstáculo ao comércio e envolvimento econômico estrangeiro na República Popular. Na verdade, não é difícil traçar um gráfico mostrando que, com alguns intervalos, o investimento estrangeiro no continente aumentou após cada ato de repressão política depois do massacre de Pequim, em 1989. Sob a direção de Jian Zemin, que assumiu a chefia do partido após os eventos da Praça da Paz Celestial, a equação funcionou vigorosamente, em particular quando a inflação foi refreada, em meados da década de 90. Hu assumiu o poder em 2002, decidido a continuar na trilha do crescimento, mas também a buscar uma "sociedade harmoniosa", diminuindo as disparidades geradas pela expansão extremamente rápida que ameaça a estabilidade social. Embora Hu tenha sido devidamente confirmado no cargo para um segundo mandato em outubro, ele vai enfrentar desafios maiores e mais profundos que os confrontados por seu predecessor. As apostas são realçadas pelo processo de globalização por trás da emergência da China, que, ao mesmo tempo, tornam a evolução do continente uma preocupação central e direta para o mundo. O desastre ecológico na China ameaça os vizinhos. A Agência de Avaliação Ambiental da Holanda, que no ano passado informou ser a República Popular a maior fonte de emissões de dióxido de carbono do mundo, indica agora que o país é responsável por um quarto do total global e dois terços dos 3% do aumento internacional desses gases em 2007. As mudanças nos padrões sociais e trabalhistas que vêm ocorrendo estão ligadas a acontecimentos provenientes do envolvimento global do país. A era da China como fonte irresistível de produtos baratos pode declinar, à medida que as expectativas dos trabalhadores e a demanda de pessoal qualificado puxem os salários para cima. As fábricas de calçados, que constituem a base manufatureira de Guangdong, no sul do país, vêm reclamando ruidosamente da ameaça do Vietnã e Sul da Ásia. Uma classe média em torno de 80 milhões de pessoas está impulsionando a demanda por todo tipo de produto, desde leite e carne até carros e móveis feitos de madeira importada. O custo dos insumos na indústria sobem consideravelmente, ao mesmo tempo que a China precisa competir nos mercados mundiais por petróleo, minério de ferro e metais. A inflação mais do que dobrou em um ano, e há sinais de que a produtividade não venha mais absorvendo plenamente os custos - as exportações chinesas para os Estados Unidos deixaram de ser deflacionárias para se tornar inflacionárias no último verão. Embora a inflação signifique que as taxas reais de juros estejam negativas, elas ainda estão mais altas que as praticadas hoje pelo Federal Reserve dos Estados Unidos. E isso tudo é combinado com as perspectivas de um aumento contínuo do yuan, o que atrai um fluxo enorme de capital especulativo e cria uma lago de liquidez, aumentando a instabilidade monetária. Empenhadas em garantir o crescimento contínuo e criar 10 milhões de postos de trabalho por ano, mas também querendo estabelecer controle e esvaziar a bolha, as autoridades hesitam quanto às políticas a adotar. O avanço na direção da "sociedade harmoniosa" parece claudicar e dezenas de milhares de protestos irrompem a cada ano, por questões que vão de terra confiscada por autoridades até problemas de poluição e corrupção. Diante disso tudo, o papel globalizado da China e a rota traçada desde 1978 significam que o continente chinês não pode se entrincheirar atrás dos muros de uma economia sob controle estatal. O equilíbrio das exportações está mudando, com a União Européia substituindo os Estados Unidos como principal destino e o crescimento das vendas para outros mercados emergentes. Isso poderia proteger a China de alguma maneira contra um desaquecimento global. Mas, enquanto a demanda interna não se tornar vigorosa o suficiente para absorver a produção de uma economia com previsão de crescimento de 9% a 10% este ano, as exportações - portanto, o mundo - ainda estarão no centro da expansão que os líderes do país precisam para continuar tendo apoio e manter o país no caminho por eles determinado. Como resultado, a China precisa de um mundo pacífico com canais comerciais abertos. Aos rumores protecionistas que partem das campanhas eleitorais nos Estados Unidos ou de políticos europeus, as autoridades chinesas reagem com desdém, com observações sobre o Ocidente não adotar a globalização que iniciou. Mas a ameaça política não pode ser ignorada por Pequim. Uma guerra comercial seria um desastre e a República Popular seria muito imprudente se encorajá-la por meio de jogo duro indiscriminado. Hu e Wen precisarão fazer um malabarismo extremamente complexo, talvez a mais desafiadora tarefa de administração do globo. Ao mesmo tempo que não podem recuar, o caminho à frente é compreensivelmente confuso para um regime que assumiu o poder após décadas de agitação nacional depois que as velhas certezas imperiais desapareceram e em seguida passou seus primeiros 27 anos sob um potentado obstinado, homicida, porém carismático, que perdeu cada vez mais o contato com a realidade, mas ainda se considerava a encarnação de uma nação renascida. A primeira geração da globalização da China pode, em retrospecto, aparecer como tendo sido uma fase relativamente fácil. O verdadeiro teste pode ser o que vem pela frente. *Jonathan Fenby é autor do livro Modern China: The Fall and Rise of a Great Power, 1850 to the Present (A China Moderna: Queda e Ascensão de uma Potência, 1850 até o Presente - Ecco HarperCollins)

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