A ciência em mutação

Pouco conhecido, o poder de cura das células-tronco tem ofuscado outras de suas possíveis benesses

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Por Monica Manir
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Ele foi um dos primeiros brasileiros - senão o primeiro - a mexer no vespeiro das células-tronco embrionárias. De 2003 a 2005, o paulistano Alysson Muotri participou de um grupo que avaliou as linhagens dessas células liberadas para pesquisa nos Estados Unidos. O diagnóstico: contaminação com açúcar. Não era uma notícia palatável. A pesquisa indicava que o soro bovino, onde tais células são normalmente cultivadas, continha uma molécula de açúcar que os humanos não têm no organismo, mas muitos de nós já conhecemos desde tenros, quando comemos carne de boi ou tomamos iogurte, por exemplo. Em contato com essa substância estranha, criamos anticorpos e tocamos a vida. Ocorre que, no meio de cultura, essa molécula se agarra à membrana da célula-tronco embrionária. Em um eventual transplante celular para o corpo humano, ele reconheceria o açúcar e atacaria a célula. "O transplante iria por água abaixo", antecipa Muotri. Apesar do alerta, os soros continuam contaminados, mesmo porque não é fácil obter soro humano, proveniente de abortos espontâneos e doações de sangue. Para esse biólogo de 33 anos, pós-doutorando do Instituto Salk, na Califórnia, "injeções de células-tronco" não são exatamente a menina dos seus olhos. Muotri entende que, nesse sentido, ainda estamos na Idade Média porque lhe parece precoce falar em cura de doenças in loco diante de tão pouco conhecimento sobre o comportamento das embrionárias, sujeitas a constantes mutações. Quando se trata do uso dessas células-curinga no estudo de medicamentos, porém, o brasileiro vislumbra o Renascimento, ainda mais com o Prêmio Nobel de Medicina concedido à técnica de nocaute de gene, que emprega células-tronco embrionárias de camundongo para estabelecer relações com determinadas doenças que atacam os humanos. Dedicado à neurociência, Muotri faz outras sinapses. Acredita em reprogramação celular, genes suicidas, cromossomo sintético - e até cura, mas da fome. Qual é o grande mérito da técnica de nocaute genético, premiada com o Nobel de Medicina? Ela permite que você manipule um ou mais genes num organismo de forma holística. Consegue levar em consideração todos os tecidos ao mesmo tempo ou um de cada vez - no caso, tecidos de camundongo. Como faz isso? Toda célula tem dois cromossomos, um vindo do pai, outro da mãe. Durante a fase embrionária, acontecem trocas de pedaços entre os dois cromossomos. Os pesquisadores se aproveitam desse sistema natural e substituem o gene bom por um defeituoso num meio de cultura. Isso o deixa inativo. Assim, é possível tirar insights do que está acontecendo com o animal. Caso ele desenvolva a doença, estuda-se sua evolução. Outra forma é colocar um gene adicional, que o camundongo não tinha. Pode ser um gene mutante humano, por exemplo. A isso chamamos de transgenia. O camundongo é o modelo ideal? O camundongo tem vantagens e desvantagens. As vantagens: é um organismo pequeno, seu período de gestação, de 28 dias, é rápido, costumam nascer de 8 a 15 camundongos de cada gestação, não é caro mantê-lo em laboratório e você consegue acompanhar centenas deles numa mesma sala, com uma câmera ou mais. Ao mesmo tempo, nem sempre o camundongo manifesta uma enfermidade depois de nocauteado com um gene causador de doença neurodegenerativa no ser humano, por exemplo. Como a gente vive até 70 anos ou mais, dá tempo de o neurônio se degenerar. Talvez na curta vida de 2 anos de um camundongo isso não aconteça. A técnica já poderia ser usada em chimpanzés, que são mais próximos dos humanos. Mas existe a questão do espaço e do financiamento. Por que não produzimos camundongos transgênicos no Brasil? Há um tempo o Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo realizou nocaute, mas por alguma razão a tecnologia não se manteve no País. Acho que, na época, não houve muito interesse da universidade ou dos governantes em incorporar esses pesquisadores à universidade. É um processo caro. O custo para produzir um camundongo do gênero aqui nos EUA é de aproximadamente US$ 2 mil. Isso só o serviço, fora o equipamento. Existe alternativa ao uso de animais nessa pesquisa? Difícil. Quando se trabalha com organismo, você precisa de visão holística. O que os críticos ao uso de animais dizem é que se pode fazer isso em cultura de células, mas essa cultura não leva em consideração o sistema imunológico. Não há como reproduzir a imunidade artificialmente. De forma alguma. O Nobel tende a estimular pesquisas com células embrionárias? Sim, e aí entra a criatividade. Um exemplo: ainda não conseguimos realizar o nocaute de células embrionárias humanas. Algo faz com que não recebam bem o DNA exógeno, de fora. Enquanto em camundongos a eficácia é de 50% a 60%, no humano é de 1%. Uma alternativa, que está quente, é a reprogramação celular. Você pega uma célula mais diferenciada do corpo humano e faz com que volte passos atrás. Reprograma para que vire uma célula embrionária humana. Aí se consegue realizar o nocaute. Tem um pessoal fazendo fusão de célula também. Como é difícil colocar um DNA para dentro, você bota um genoma inteiro lá. Surge uma célula embrionária humana com dois núcleos. Não gosto dessa técnica porque você estará lidando com dois genomas numa mesma célula. Nada parecido com o que gostaria de ter. O que gostaria de ter? Penso que o uso de célula-tronco está muito direcionado para a cura de doenças, para o transplante celular propriamente dito. Mas acho que seu uso mais interessante, no momento, é como ferramenta para se estudar o desenvolvimento humano. Não tem nada a ver com doença. Quer dizer, tem, mas não com a cura propriamente dita. É um meio único para explorar de que maneira as células dão forma ao corpo, nenhuma célula adulta forneceria esse tipo de resposta. Como se descobre medicamento hoje em dia? Fazemos testes em camundongo e aí criamos uma droga. Depois, nas triagens clínicas, confirmamos se ela apresenta algum efeito colateral. Cerca de 80% das drogas acabam sendo retiradas dessa triagem por serem tóxicas para humanos, em geral porque o fígado não consegue metabolizá-la direito ou porque uma substância afeta o coração. Vamos supor que você pegue a célula-tronco embrionária humana e a faça se diferenciar em células do fígado e do coração. Você testaria a droga ali, à parte. E se a droga afetasse outros órgãos? Temos 220 tipos celulares no corpo humano. Poderíamos descobrir mecanismos de diferenciar as células embrionárias nesses 220 tipos para testar a droga. Acho que isso é o futuro. Não existe pesquisa parecida feita no presente? Ainda não foi nada publicado, mas aqui no laboratório já fazemos isso. Existe uma doença que se chama esclerose lateral amiotrófica, também conhecida como ELA. Alguns tipos de neurônios, que chamamos de neurônios motores, são encarregados de fazer com que o corpo se movimente. Em portadores dessa doença, esses neurônios morrem, ainda não se sabe direito como. Dependendo da mutação do neurônio, a doença se manifesta no começo da vida, mas em geral surge aos 30, 40 anos. Entre dois e cinco anos depois a pessoa morre por falha pulmonar. Em cultura, diferenciamos células-tronco embrionárias humanas em neurônios motores. Então testamos drogas que ajudam esse neurônio a sobreviver. Já conseguimos algumas respostas, porém lidamos com um pool de moléculas. Precisamos descobrir, nesse pool, qual delas é realmente o princípio ativo. De onde vem o investimento para a pesquisa? Somos privilegiados na Califórnia. Todo o investimento para esse tipo de trabalho vem do CIRM (California Institute for Regenerative Medicine), que é a proposição 71 do (governador) Schwarzenegger de dar US$ 3 bilhões por dez anos para pesquisadores. Conseguimos US$ 2,5 milhões para desenvolver nosso trabalho, que já dura cinco anos. Quantas células embrionárias usaram durante esse tempo? Usamos quatro linhagens derivadas de quatro casais doadores. Os casais fazem fertilização in vitro e conseguem, eventualmente, produzir alguns óvulos fecundados. Depois de ter a criança, podem descartar os óvulos, mantê-los congelados ou doar para pesquisa. Muitos doam. Aí você tira as células embrionárias do blastocisto logo após a fecundação, três ou quatro dias depois, e ali já existem umas 200 células, que são colocadas em cultura. É possível amplificar essas células sem deixar que se diferenciem. Então temos isso indefinidamente, embora, quanto mais tempo em cultura, maior a chance de acumular uma mutação. É preciso monitorar direto para saber se as células estão se comportando como deveriam. É por isso que ainda existe desconfiança quanto ao seu uso como terapia celular? Sim. Como elas sofrem muitas mutações, são como bonsais: tem que acompanhar de perto, duas vezes por dia. Não é todo mundo que está disposto a não ter fim de semana. São como filhas. Fizeram um estudo em ratos tentando mostrar como seria a terapia em humanos. Houve uma melhora, mas não deu para saber com certeza se por causa da célula ou por outra substância no soro. O fato é que detectaram que algumas dessas células, que deveriam se diferenciar, não se diferenciaram. Em vez disso, começaram a se dividir. Pararam a pesquisa antes que ela levasse a um processo neoplásico, a um tumor. Mas isso impediria uma pessoa de receber injeção de célula-tronco? Não sou contra terapia celular, só acho que ela está muito no começo ainda. Há alternativas para evitar que esse processo neoplásico aconteça. Pode-se, por exemplo, colocar dentro de uma possível célula embrionária humana transgênica os tais genes suicidas. Que genes suicidas? Você coloca a célula lá e deixa fazer o que tem de fazer. Assim que cumprir seu papel, você pode ativar esse gene suicida e eliminar a célula do organismo. E se as células que se reproduziram a partir dela sofrerem mutações? Por isso não é para toda aplicação. Precisa descobrir onde está o problema. Às vezes não está na célula exatamente, mas em fatores que a protegem. No caso da ELA, o entrave são as células que nutrem os neurônios. Podemos colocar uma célula que faça isso lá. Se percebemos que tem algum câncer ou tumor sendo originado a partir dela, ativamos o gene suicida. O cromossomo sintético, divulgado nesta semana, é uma revolução no mundo da genética? É difícil falar de algo ainda não publicado. Supondo que Craig Venter (cientista americano) tenha realmente criado o cromossomo sintético, significa que encontrou a requisição de genes mínima compatível com vida. Quer provavelmente criar uma bactéria totalmente artificial. Mas o que é vida? Pela definição da Nasa, a vida, como tal, tem que se propagar sozinha. O cromossomo sintético precisa fazer isso: replicar-se de forma autônoma, e seus descendentes, também. Acho factível. Se fizer isso, vai ser fenomenal porque conseguirá botar na bactéria genes importantes para o humano. Verá se causa alguma diferença na bactéria ou não. Deve ser objetivo do pesquisador tentar obter células-tronco embrionárias sem destruir o embrião? Já tentaram mostrar esse princípio, mas não conseguiram ir até o fim. Acho possível tecnicamente, mas ainda não fizeram isso. Para mim, é tudo paliativo. Acho um pouco de modismo, não é uma boa ciência. Estão querendo driblar uma questão ética. As questões éticas variam conforme a sociedade, não é uma questão fundamental. Aconteceu a mesma coisa com o transplante de coração, com o transplante de sangue. Também houve esses dilemas morais. Eu jamais gastaria minha carreira procurando uma célula-tronco ética. Você aceitaria receber uma injeção de célula-tronco embrionária? Só vejo duas premissas para aceitar esse tipo de transplante. Em primeiro lugar, eu precisaria estar em estado terminal, sem nenhuma alternativa. E teria de ser algo que realmente melhorasse minhas condições. A outra coisa é se tivesse uma base racional. Colocar células-tronco no corpo só por colocar, eu não aceitaria. Entendo a divulgação maciça da célula-tronco como possibilidade de cura de doenças. Sem essa divulgação, não haveria esperança, que no fundo é o que move o mundo. O medo que dá é quando mostram apenas esse lado, o mais comovente, e se esquecem de outros tipos de aplicação. Se pegássemos uma célula embrionária e desenvolvêssemos um músculo de boi, por exemplo, será que esse músculo não poderia ser usado para produzir alimento? Não estaria aí a cura para a fome do mundo?

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