A conta aberta da América hispânica

Em busca de um insaciável renascimento, países da região vivem em briga com o passado

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Por Julio María Sanguinetti e EL PAÍS
Atualização:

A América hispânica sofre do chamado "mito de Adão", essa pulsão de refundação que a cada poucos anos imagina que estamos nascendo de novo a partir da terra arrasada de um passado recente que se vitupera e deve ser expulso da história para as profundezas infernais. Dizemos América hispânica porque o Brasil tem outro sentido de continuidade. Sua história o levou a viver as próprias peripécias como uma evolução permanente. Domínio de Portugal, ele se beneficiou do translado da corte de Dom João VI em 1808, produzido no princípio da invasão napoleônica. Esse fato europeu significou para o Brasil beneficiar-se de instituições européias, incluindo seu Exército (tão associado ao britânico no processo de reconquista), e, sobretudo, manter a unidade que os "castelhanos" - como eles nos chamavam - não conseguimos preservar. Em conseqüência, foi monarquia e se chamou Império quando Pedro I, filho do rei, resolveu permanecer no Brasil e declarar sua independência quando seu pai retornou a Lisboa. A diplomacia, o Exército e o empresariado mineiro-paulista foram, desde então, os pilares de uma organização que foi se fazendo sem grandes rupturas. Não houve guerra da independência e a rebelião republicana chegou em 1889 pela mão do Exército, sem pagar o preço de uma conflagração nacional. Tudo isso deu ao Brasil, ao "Império", uma visão de longo prazo, um sentido de continuidade histórica que perdura e, como diz Celso Lafer, fez dele "um monster country que não assusta". Quando Lula chegou ao poder, não faltaram comentaristas que, em tom dramático, falavam da chegada a Brasília, esse Versalhes do nacionalismo arquitetônico, de um sindicalista barbudo de esquerda emergente das classes mais pobres do País. É verdade que quem tivesse acompanhado o processo político de perto jamais poderia ter avalizado a idéia de uma situação traumática. Lula nunca expressara ressentimentos e havia sido espirituosamente explícito quando, perguntado sobre se era marxista-leninista, respondera que era apenas torneiro mecânico. Muito longe de qualquer radicalismo, o Brasil viveu uma continuidade tranqüila em que o presidente aparece acima de tudo, erigido já em mito nacional, sem se envolver em demasia nos assuntos do dia-a-dia, nos quais aterrissa de vez em quando com expressões de sabedoria popular ditas como se ele próprio não fosse o responsável. Na América hispânica, a ruptura tem sido a norma. Estamos há 200 anos do início do processo de independência que foi concebido como uma ruptura absoluta, um desengajamento irreconciliável da Espanha, inspirado no incêndio da Revolução Francesa que pretendeu reduzir a cinzas o passado monárquico. Bolívar talvez seja o paradigma dessa visão tão desmesurada quanto à geografia tropical. Essa atitude arrasadora do passado ainda sobrevive. Instaura-se o ódio ao que ficou para trás e convoca-se uma inadiável "purificação" que nos faria retornar a uma "idade de ouro" vaga e indefinida. Mesmo sem o saber, os líderes da refundação foram spenglerianos, com uma visão de Fausto da vida em que se sucedem a morte e a transfiguração num vir-a-ser dramático. Constrói-se repudiando, olha-se o futuro a partir de uma utopia passada, regenera-se a partir da decadência. A retórica do presidente Hugo Chávez se encaixa exemplarmente nessa visão de enfático desprezo pelo passado democrático que, apesar de todas suas contradições e limitações, no fim das contas era democrático. Dessa ótica, proclama construir um Socialismo do Século 21 cujo pilar fundamental não é outro senão a reeleição indefinida do caudilho messiânico, denominar de República Bolivariana um autoritarismo populista e usar com prodigalidade a chuva de ouro trazida pelo petróleo. Não é muito diferente o processo equatoriano, onde o triunfante presidente Rafael Correa também cancela o passado e proclama um novo tempo histórico. Ele não cai nos excessos retóricos de seu colega venezuelano, afirma que não procura sua entronização ilimitada, mas está claro que a recém-eleita Assembléia Constituinte se inscreve fatalmente nessa ilusão de estar construindo o novo paraíso. A Bolívia atravessa também uma etapa constituinte em meio a revoltas divisórias e interesses cruzados: Santa Cruz, a região petrolífera e agrícola mais próspera e mais rica, invoca seus impulsos autonomistas; Sucre, a velha capital do Potosí de onde saía a prata para o mundo, reivindica ser capital de verdade, em disputa com La Paz, que aspira a ser uma capital real e não submetida à divisão de poderes que vive hoje. Os três países estão elaborando novas constituições, imaginadas todas como o início de um novo tempo. Os quase dois séculos de independência são observados como um fracasso e devemos começar da tabula rasa. Já nos alvores da revolução da independência, Francisco de Miranda disse, sabiamente, em 1799: "Temos dois grandes exemplos diante dos olhos: a revolução americana e a francesa. Imitemos discretamente a primeira; evitemos com supremo cuidado os efeitos fatais da segunda". Não há dúvida de que foi esse jacobinismo robespierriano que predominou, apesar dos federalismos inspirados na revolução americana: partia-se do nada e tudo podia ser moldado pela vontade dos novos senhores-cidadãos. Essa mitologia sobrevive mais do que se costuma dizer. A retórica argentina atual é apagar o rastro dos "ominosos anos 90", identificados com as presidências de Carlos Menem. O Chile, por sua vez, oferece o exemplo contrário: os governos democráticos não varreram a economia aberta que vinha da ditadura, preservaram suas conquistas dinâmicas e, sobre sua base, foram recuperando liberdades e avançando no desenvolvimento social, embora ainda seja longo o caminho a percorrer (como se verifica hoje em dia, na inquietação das ruas). A continuidade de quatro governos de rumo parecido, que reconstruíram liberdades sem sonhar em semear em uma terra arrasada, permitiu ao Chile um crescimento maior que o dos demais. O grande dilema é que pouca coisa saudável nascerá dessas rupturas. Esbanjam-se esforços para destruir, quando o desafio é abrir-se para um presente de globalização, competência, revolução científica, abertura e aldeia global das comunicações. Infelizmente, todos esses grandes sonhos regeneradores não olham para esse mundo, ao qual negam, mas para dentro, não respeitando os ventos dos tempos e acreditando, ainda, que à força de gastos públicos possam dominá-los a sua vontade. *Julio María Sanguinetti, ex-presidente do Uruguai, é advogado e jornalista

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