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A CPI de dois gumes

Decisão de investigar o MST revela o complicadíssimo cenário em que se movem os amigos e os inimigos da reforma agrária

Por José de Souza Martins
Atualização:

TERÇA, 27 DE OUTUBRORepasses continuam Apesar da CPI do MST, instalada na semana passada, o governo manterá o repasse de recursos à entidade, diz o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha. O presidente do STF, Gilmar Mendes, pedira a suspensão em caso de invasão de terras.

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Grupos de oposição à reforma agrária conseguiram colocar na pauta do Congresso Nacional a instalação de uma CPI mista para apurar irregularidades na transferência e uso de recursos públicos para entidades ligadas ao MST. Trata-se de uma reação à invasão de uma fazenda da Cutrale e destruição de 7 mil laranjeiras por militantes dessa organização política. Esse foi um erro político monumental do MST. Ultrapassou os limites da ação propriamente política, mesmo que intelectuais cujo labor agrícola se limita à colheita nas gôndolas dos supermercados digam que foram derrubados "alguns pés" de laranja e tudo se justifica pelo fato de que parte da terra é grilada.

A ressurreição tardia do luddismo que a invasão expressa, cópia malfeita da ação anti-industrialista dos quebradores de máquinas, que marcou as lutas dos trabalhadores ingleses no início do século 19, deveria ser interpretada à luz de outro fato: no caso da eventual e possível desapropriação da fazenda e distribuição das terras a assentados, terão os invasores destruído o próprio potencial patrimônio. O luddismo, aliás, foi banido da história das lutas dos trabalhadores há bem mais de um século, quando aprenderam que suas aparentes vitórias imediatas eram de fato derrotas históricas.

A decisão pela CPI revela o beco sem saída e o complicadíssimo cenário em que se movem amigos e inimigos da reforma agrária. Se as oposições não quiserem cair na armadilha que montaram para si mesmas, a CPI investigará a fundo o recuo da reforma agrária no governo Lula em relação à realizada no governo FHC, como reiteradamente denuncia o próprio MST. Porque é esse recuo que motiva as ações radicais daquela organização política, sendo o governo o responsável por elas, pois, em última instância, com o recuo as instiga. Com o caso da Cutrale, membros do governo soltaram a língua, como informa Mauro Zanatta, no Valor Online. Anunciaram que Lula "está de saco cheio" com o MST e a CPI vai ser usada pelo governo para enquadrar a organização, portanto, para trazê-la de volta ao redil de seu projeto de poder e do PT. Refém do governo, o MST sabe que não tem alternativa.

Há dois anos os dirigentes dessa facção agrária informal do PT e do governo não são recebidos pelo presidente da República. O que é bem indicativo da profunda crise que os separa, se levarmos em conta que no início do governo Lula, seu principal dirigente, João Pedro Stédile, tinha passe livre no Palácio do Planalto, ao qual comparecia, como disse a jornalistas, para participar de retiro espiritual. A seita do Planalto se desfez quando da crise do mensalão, para evitar que os respingos do esgoto político atingissem a água da sua persignação e de seus exorcismos.

O afastamento de agora foi precedido por uma proximidade tão grande e uma promiscuidade tão intensa que justamente nela começou a perda de crédito do MST junto a Lula e ao governo. Lula e o PT acreditaram erroneamente que o MST fosse apenas uma entidade cúmplice para ser usada no barulho contra os adversários e na arrecadação de votos. Mas o MST, com apoio da CPT, havia instalado na presidência do Incra um ministro paralelo para fazer a reforma agrária radical, ainda que o ministro do Desenvolvimento Agrário e o ministro da Agricultura fossem pelos caminhos mais brandos das formalidades e da diplomacia para amansar o touro furioso da agropecuária.

A política do duplo e do dúbio, que está na essência do governo atual, não prosperou na reforma agrária pelos muitos problemas que se anunciavam em face de uma indiscriminada política de desapropriações. Sobretudo, pelos enormes prejuízos que causaria à coalizão de Cristo com Judas, emblematicamente definida por Lula há poucos dias. Na sua opção preferencial pelo agronegócio, Lula não leva em conta a importância econômica e social da agricultura familiar, que ocupa apenas 24,3% da área total dos estabelecimentos agropecuários. No entanto, segundo o professor Rodolfo Hoffman, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queirós, responde pela produção de 87% da mandioca, 70% do feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 58% do leite, 21% do trigo e até 16% da soja. Literalmente, é a agricultura familiar que alimenta o Brasil, com a altíssima produtividade que esses dados revelam.

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Ainda no começo do governo Lula, o MST fez-lhe uma belíssima demonstração da competência da agricultura familiar, numa verdadeira liturgia do ofertório, apresentando-lhe produtos de assentamentos de várias regiões do Brasil, resultados de uma agricultura de agregação de valor, que é a saída modernizadora capaz de assegurar prosperidade aos pequenos agricultores. Lula carnavalizou o ato, como se ele próprio é que fosse a principal colheita do MST. Isso causou imensa frustração e indignação na entidade pela falta de seriedade em relação à emocionada demonstração dos trabalhadores.

Mas, sobretudo, terá que ser objeto da CPI a própria CPI, que deverá esclarecer ao povo brasileiro por que decidiu investigar só uma das 71 organizações de sem-terra que atuam no país, com práticas semelhantes às do MST. Por essa parcialidade, deverá a CPI deixar claro que se trata mesmo de uma CPI e não de um IPM, como eram os inquéritos policiais militares da ditadura. O mais provável e mais lamentável é que venha a ser uma CPI com ânimo de IPM, que é o que se vislumbra.

Será essa a hora de as oposições advogarem pelo reconhecimento de que há no país um capitalismo agrícola dual, que o MST não reconhece, que tem de um lado uma agricultura produtiva, composta tanto de empreendimentos do agronegócio quanto de empreendimentos da agricultura familiar, fundamentos do êxito agrícola do Brasil, êxito que só pode ser incrementado com uma reforma agrária feita pelo Estado e não por organizações políticas paralelas. E, de outro lado, a economia predatória e nociva ao País dos que se locupletam, apossam-se de terra que não é sua, especulam, ganham sem merecer, e também aqueles que depredam, destroem e destroem-se.

*Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Autor, entre outros livros, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

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