PUBLICIDADE

A curiosa vida de objetos na era da covid-19

Museus e historiadores já recolhem peças que contarão a história da pandemia no futuro

Por Sophie Haigney e Peter Arkle
Atualização:

Bolhas de plástico que pairam sobre as mesas do restaurante. Hastes para pressionar o botão do elevador sem contato. Assentos portáteis para acoplar em postes de luz para compradores que esperam do lado de fora de lojas com número de clientes controlados. Vestidos com saias que têm um raio de quase 2 metros. Caixas e divisórias para manter os frequentadores de academia separados. Uma manga de plástico que permite abraçar idosos em casas de repouso. Máscaras em todos os formatos imagináveis.

Uma profissional da saúde checa a temperatura de um guarda nas eleições parlamentares do Sri Lanka Foto: Chamila Karunarathne/EFE

PUBLICIDADE

Um conjunto de novos objetos surgiu nos últimos meses para enfrentar a nova realidade de doenças, lockdowns, distanciamento social e manifestações. Alguns desses objetos são excêntricos e ainda não concretizados - ideias que talvez nunca vejam a luz do dia. Outros, como coquetéis em sacos plásticos, termômetros e todo tipo de separações, já estão circulando amplamente. E alguns não são novos: itens domésticos familiares, como garrafas de Lysol e rolos de papel higiênico, que adquiriram um novo significado e importância por causa da escassez ou súbitas necessidades incomuns.

"Estou pensando muito no que esses objetos vão dizer a respeito da pandemia no futuro", disse Anna Talley, aluna de mestrado em História do Design no Victoria and Albert Museum e no Royal College of Art. Anna e uma colega, Fleur Elkerton, compilaram um amplo arquivo online chamado Design in Quarantine. Alguns desses objetos são extravagantes ou um pouco ridículos, como uma coroa gigantesca para o “distanciamento” distribuída pelo Burger King alemão em maio. Outros são os artefatos comoventes de doenças e mortes em massa, colapso econômico e crise.

"Os objetos podem nos dar uma visão de um período que os documentos não podem", disse Alexandra Lord, presidente do departamento de medicina e ciência do Museu Nacional de História Americana, que está ajudando a liderar a força-tarefa de coleta de itens relacionados à covid-19 do museu. Como em muitos museus, os curadores estão envolvidos no que é chamado de coleta rápida de respostas, tentando reunir materiais e objetos quando a crise ainda se desenrola. A natureza da pandemia dificultou a coleta de objetos físicos, mas Alexandra e seus colegas solicitaram ideias e ofertas ao público. Eles estão tentando determinar o que será crucial para futuros historiadores e visitantes, mesmo enquanto a crise continuar a se desenrolar.

"Nós, como historiadores, gostamos de ter uma visão a posteriori, mas já sabemos que certos objetos, como ventiladores, serão uma parte crucial da história", afirmou Alexandra. As máscaras também se tornaram símbolos da crise em sua miríade de formatos já em evolução: costuradas à mão, N95, de alta costura, reutilizáveis, descartáveis.

Na Sociedade Histórica de Nova York, os historiadores colecionam itens desde meados de março, tentando reunir coisas que contam uma história específica a respeito da experiência da cidade. Eles começaram a fazer uma lista de desejos de itens para a coleção que incluía placas sobre fechamento de lojas em diferentes idiomas, garrafas de destilarias que foram convertidas em garrafas para álcool em gel e o cobertor de um bebê nascido em meio à pandemia.

"Há uma camisa polo branca que o governador costuma usar quando faz seus comunicados diários à imprensa", disse Louise Mirrer, presidente e diretora executiva da Sociedade Histórica de Nova York, em maio, quando o governador Andrew Cuomo fazia briefings diários. "Gostaríamos de ter isso e pediremos isso a ele."

Publicidade

A Sociedade Histórica de Nova York também está buscando objetos que ilustrem a vida pessoal da pandemia - alguns dos quais seriam difíceis de coletar agora. "Existem alguns objetos mais sensíveis que pediremos mais tarde, como artefatos de pessoas que perderam amigos e parentes", disse Louise.

Alguns objetos comuns se transformaram em artefatos, seja por causa da sombra da perda ou simplesmente por causa de sua importância recém descoberta à medida que a crise continua a mudar. Alguns dos primeiros modismos da pandemia podem já parecer relíquias do passado. "As coisas de abril já parecem velhas", disse Donna Braden, curadora sênior do Henry Ford Museum. "Era quase mais fácil identificar esses objetos icônicos no início, mas agora a crise se tornou muito fragmentada e generalizada".

Os protestos em junho também marcaram uma mudança significativa e um grande evento de coleta para os museus de história. A Sociedade Histórica de Nova York, por exemplo, coletou um mural representando George Floyd pelos artistas Matt Adamson e Joaquin G que cobria uma loja de calçados no Soho. Assim como cartazes e posters de manifestações.

Alguns objetos existem em uma espécie de sobreposição entre os protestos e a pandemia, registros que contam duas narrativas ao mesmo tempo. “Nos protestos “Black Lives Matter”, muitas pessoas carregavam placas que fazem referência ao fato de que a covid-19 está impactando desproporcionalmente as comunidades negras, e que tudo isso faz parte dessa história maior em relação ao racismo sistêmico nos Estados Unidos”, disse Alexandra.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Há algo de comovente e esperançoso nesses atos de documentação e coleta, na tentativa de olhar para trás em nossa crise atual por meio das lentes imaginadas da história. Ao coletar objetos presentes como artefatos do futuro, imaginamos esse futuro como uma espécie de depois - um tempo e um local em que isso não está mais acontecendo e podemos olhar para trás.

À medida que historiadores e curadores começam a coletar e documentar, muitos de nós nos envolvemos em uma espécie de arquivo pessoal: documentando lockdowns e doenças, guardando artigos de jornais e projetos de arte infantil, construindo o que equivale a coleções pandêmicas. “Acho realmente interessante que as pessoas estejam se tornando quase historiadoras de suas próprias vidas”, disse Alexandra.

Por definição, estamos sempre vivendo a história, mas uma crise como essa traz alívio: sentimos o significado desse tempo para futuros observadores e temos o desejo de preservá-lo. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

Publicidade

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.