A educação dos sem-futuro

A concepção oficial de ensino está longe de tudo o que somos e podemos ser. Não dialoga com a riqueza da cultura popular

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Por José de Souza Martins
Atualização:

O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), das escolas brasileiras, divulgado pelo Ministério da Educação, é um retrato melancólico da falência do nosso sistema educacional e da falta de perspectivas para a educação brasileira. No que era ruim em 2005, houve modestas melhoras em 2007. Na escala de 0 a 10, o ensino de 1ª à 4ª série teve nota 4,2. No ensino médio, a nota foi 3,5. Falta ao Brasil a indiscriminada disseminação de escolas para ensinar muito e bem, em tempo integral, e não para contemporizar com uma indigente disposição para o estudo e o rendimento escolar. Gerações de brasileiros que ascenderam socialmente por meio da escola, que respondem com competência às demandas do desenvolvimento econômico e social, procedem da escola que reprovava quando o desempenho escolar não era satisfatório. A promoção automática, que privilegia a categoria de idade e não dá precedência ao nível de conhecimento acumulado na vida escolar, empobreceu a escola e difundiu o ensino sem a contrapartida da responsabilidade do aluno. Em nossa cultura popular, escola é sinônimo de trabalho e estudante é profissão. É privilégio não trabalhar para estudar, de quem já deveria estar contribuindo para o ganho familiar do pão nosso de cada dia. Assim como qualquer trabalhador tem que trabalhar e bem para receber seu salário, os próprios pais, no geral, entendem que os filhos têm que estudar duro para aprender e receber o diploma. Ficam chocados com essa estranha escola de facilitação do diploma quando o diploma não é merecido. Parece-lhes estímulo à vagabundagem dos filhos. Se o mau desempenho fosse excepcional característica de alunos isolados, seria fácil compreender inovações de estímulo como essa. Mas, quando o mau desempenho se reflete nas médias e nos índices de todo o sistema educacional, significa que estamos todos reprovados. Nesse caso, a inovação é auto-indulgência dos educadores, complacência com eles próprios. A educação da concepção dos educadores é pobre e ineficiente em face da educação da concepção dos trabalhadores. Aliás, qualquer empresa moderna sabe que o merecimento de um resultado é o melhor estímulo ao desempenho de seus trabalhadores. O resultado escolar imerecido e nominal desmoraliza o aluno esforçado e elege o desinteresse como virtude. Mesmo que os autores dessa opção pedagógica possam reunir muitos e aparentemente sólidos argumentos filosóficos em seu favor, não tem ela curso livre e fácil na compreensão dos pais e dos próprios alunos por ela alcançados. É opção derrotada em casa, em face da lógica sólida da economia moral das famílias que vêem a escola e o ensino em conflito com valores mais fortes e persistentes do que aqueles que ministros, secretários de educação e teóricos de academia podem impor aos alunos com base unicamente na força de seu poder. Essa falta de diálogo e de compreensão sociológica e antropológica em relação a grupos e a instituições que se escoram na autoridade da tradição torna inúteis inovações como essa. É que suas supostas virtudes são cotidianamente desconstruídas na experiência, na conversação e no modo de viver e pensar próprios da vida doméstica, a cada passo desqualificadas pelo mau desempenho de alunos individualmente e até de escolas em conjunto. Nossa concepção oficial de educação está longe de tudo o que somos e do que podemos ser. Não dialoga com a riqueza da cultura popular, a ela se contrapondo, numa perdida guerra de saberes, desde o desconhecimento do bilingüismo que separa a escola da rua até o muito da sabedoria que pode ser reconhecida na perspectiva das etnociências: da zootecnia popular à meteorologia popular, à botânica popular, à medicina popular. Na lingüística, o português de Machado de Assis contraposto ao português do dialeto caipira, com seu sotaque nheengatu, que sobrevive mesmo nas cidades. São mais que diferenças. São códigos distintos de compreensão do mundo. Nas notas do Ideb são considerados justamente o português e a matemática. Porém, qual dessas duas línguas portuguesas? O baixo resultado não seria antes índice da distância que separa a lógica do português pombalino da escola da lógica do português de casa e da rua? Mais grave, nossas escolas, com poucas exceções, estão divorciadas dos centros de distribuição da cultura erudita, como os museus, os parques, os monumentos, as salas de concerto. São equivocadamente auto-suficientes nas suas insuficiências. Os serviços educacionais dos monitores da Pinacoteca do Estado, em São Paulo, sentados no chão com as crianças, no meio das obras de arte, mostrando, explicando, ensinando é fina educação, ainda por cima gratuita. Apesar de uma saída da ferrovia e do metrô na própria porta da instituição, o número de crianças e adolescentes recebendo esse benefício é muito inferior ao possível e desejável, por mero desinteresse das escolas. No oba-oba político em que este país vive, consagrando corruptos e incompetentes como enviados de Deus e salvadores da pátria, é pouquíssimo provável que consigamos encontrar, com a seriedade necessária e a confiança imprescindível, o caminho de saída. Corremos o imenso risco de que no ano do bicentenário da Independência, 2022, ano da meta para alcançarmos os índices educacionais dos países desenvolvidos, chegarmos lá quando eles estiverem então muito mais longe, muito mais adiante. Para quê nos preocuparmos hoje, se o governo com seus programas sociais, como o Fome Zero e o Bolsa-Família, criou uma indústria de exclusões sociais que é também indústria de certezas de que os pais-da-pátria proverão para que não falte o naco de pão que manterá fingidamente de pé os que já caíram? Que desafio podem ter crianças e adolescentes para sair do buraco negro da ignorância, para estudar e aprender, se poderão contar com o leite generoso das tetas fartas da tributação extorsiva, que tira de quem se esforça, para manter quem não tem motivos para se esforçar e tem apenas motivos para votar? *José de Souza Martins, professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP, é autor de A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto)

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