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A era da frustração

O período pré-1ª Guerra Mundial foi marcado pela desigualdade, terrorismo e descontentamento com a democracia. Soa familiar?

Por Ward Wilson
Atualização:
Revival. Ex-soldados com uniformes da 1ª Guerra participam da parada do Dia dos Veteranos em Nova York Foto: JEWEL SAMAD/AFP-GETTY IMAGES

Este ano marca o 100º aniversário da 1ª Guerra Mundial. Livros, artigos e eventos lamentaram os custos, homenagearam os soldados e exaltaram os valores dos vitoriosos. Mas por trás do sentimentalismo há também realidades duras e lições convincentes para a democracia que se aplicam não a algum mundo esquecido e distante, mas ao nosso. Muitas coisas nos anos 1890 parecem inquietantemente familiares. Nosso tempo as reproduz.

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O período anterior à 1ª Guerra foi uma era de frustração. Era chamado de Belle Époque pelos que tinham a sorte de ser os ricos da Europa - um tempo de cartolas, tédio e passeios majestosos. Mas a historiadora Barbara Tuchman nos lembra que havia também um certo frenesi e um sentimento obsessivo, que um observador descreveu como “cheiro de queimado no ar”. 

Foi um tempo de crises de política externa intensas e febris. Emergências surgiam e desapareciam em vertiginosa velocidade. A crise venezuelana de 1895, a crise marroquina de 1905, mesmo a Guerra Hispano-Americana, foram eventos curtos e intensos que ganharam manchetes por um dia para logo se dissiparem na insignificância.

As crises súbitas e seus entusiasmos repentinos eram alimentados por insatisfações econômicas profundas. Havia uma distância grande e, ao que parecia, permanente entre ricos e pobres - considerada, na época, uma decorrência inevitável da industrialização. Alemanha, Grã-Bretanha, França e Estados Unidos foram abalados por crises nacionais - como o Caso Dreyfus, na França - que emperravam o funcionamento dos governos. Em retrospecto, porém, essas crises parecem ter sido sobre quase nada. Por que paralisar a França por oito anos pela injustiça com um capitão? Ou levar o governo alemão à beira do colapso por uma pretensa má conduta sexual? A política parecia um motor rateando: as nações não avançavam, mas havia calor, fumaça e o guincho de motores girando fora de controle.

Numa obra profundamente pessimista intitulada The Condition of England (A situação da Inglaterra), publicada em 1909, Charles F. G. Masterman advertia sobre um mundo dividido verticalmente “entre nação e nação armada até os dentes” e horizontalmente “entre ricos e pobres”. A sociedade global, escreveu ele, era presa das “gigantescas e inovadoras forças do avanço mecânico, da sublevação de povos, das insatisfações sociais”, enquanto o poder “se concentrava cada vez mais nas mãos de corporações imensas”. Ele expressou um pessimismo profundo sobre o futuro num cenário em que “vastos mecanismos de destruição são colocados nas mãos de uma civilização sem muito autocontrole” na qual “o desenvolvimento material transcendeu o progresso moral”.

A vida social, tanto nas camadas superiores como nas inferiores, parecia estranhamente fútil. A ascensão de uma moral vitoriana claustrofóbica entre os ricos se combinava com campanhas periódicas - como os movimentos por temperança nos EUA nos anos 1880 - que procuravam pôr fim à decadência nas classes inferiores. Para ricos e pobres, o tempo era de coerção social.

Ainda mais revelador, houve uma forte guinada para o radicalismo, o anarquismo e a violência. O assassinato virou lugar-comum. Nos 20 anos antes de 1914, seis chefes de Estado foram mortos por anarquistas: o presidente Carnot, da França, o primeiro-ministro Canovas, da Espanha, a imperatriz Elisabeth, da Áustria, o rei Humberto, da Itália, o presidente McKinley, dos EUA, e o primeiro-ministro Canalajas, da Espanha. E, é claro, foi morto, no verão de 1914, o arquiduque Ferdinando, da Áustria.

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Era como se nuvens carregadas tivessem se estabelecido sobre a era, trazendo tensão, claustrofobia e falta de ar. É difícil escapar da ideia de que essa sensação de sufocamento fora causada, de certo modo, pela longa paz que a Europa experimentara por quase cem anos. O Concerto da Europa - um acordo tácito para evitar a guerra por meio de conferências e equilíbrio de poder - foi estabelecido em 1815, após a queda de Napoleão. Manteve a paz por quase um século, trazendo crescimento econômico e uma riqueza enorme. Mas era também um sistema conservador que visava, antes de tudo, a preservar a ordem estabelecida. 

Não por acaso, rebeliões explodiram por toda a Europa em 1848. Havia um desejo profundo de mudança. O esmagamento dessas rebeliões alimentou uma desesperança que levou ao anarquismo e assassinatos. Os anarquistas argumentavam, e muitos acreditavam, que a única maneira de trazer uma verdadeira mudança era com ações radicais e violentas.

Enquanto as classes superiores sentiam tédio durante “a bela época”, outros tinham uma perigosa sensação de desespero. Uma guerra - qualquer guerra - seria melhor, diziam, que a paz sufocante que pairava sobre a Europa. Um grande número de pessoas ficou aliviado com a eclosão do conflito em 1914. Na Inglaterra, multidões enormes aplaudiram e os sinos das igrejas badalaram sem parar após o anúncio da guerra. O escritor alemão Thomas Mann se perguntou se a guerra não poderia ser vista como “uma purificação, uma libertação, uma esperança enorme...”.

Esse senso de frustração não soará familiar? Cada condição dessa lista - relações internacionais, política, economia, hábitos sociais, violência - encontra eco em nossa própria era. Tem havido uma série de crises febris de política externa: disputas sino-japonesas sobre ilhotas, ameaças de guerra quanto ao programa nuclear do Irã, combates em Gaza, conturbações na Ucrânia, guerra civil na Síria, a súbita ascensão do Exército Islâmico (EI). Algumas dessas são questões genuínas. Outras, em retrospecto, parecem ter a ver mais com ódio e emoção que com choques reais de interesses.

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Economicamente - nos EUA ao menos - há novamente barões ladrões e um largo e preocupante abismo entre ricos e pobres. Nós, no Ocidente, vivemos num tempo em que as respostas à ruptura de regras sociais são no mínimo tão ferozes como na era vitoriana. Personalidades esportivas perdem emprego por alegações de atos ofensivos aos costumes. Campanhas por diversidade resultam em notáveis manifestações de intolerância. Mas é em países menos liberais que a imposição coercitiva de hábitos sociais é mais completa. A feroz repressão de gays na Rússia e as vertentes fanáticas do Islã refletem uma crescente tirania de costumes sociais em muitos cantos do globo.

Em política doméstica, vários países apresentam impasses, mas os mais óbvios são nos EUA. A crise do teto da dívida americana, um impasse que parecia não ter nenhuma razão de ser, adquiriu contornos parecidos com os imbróglios políticos dos anos 1890. Governos hoje estão paralisados por causas tão insignificantes que parecem incompreensíveis em retrospecto. 

E, como na Belle Époque, tem havido um aumento repentino de atos desesperados de violência. O extremismo moderno é mais centrado em matar civis que em assassinar líderes, mas a similaridade está lá: frustração, ódio e vontade de derramar sangue. Uma explicação para as peculiaridades de nossa era poderia ser que, como o Concerto da Europa, tem havido uma ordem estabelecida que existe solidamente há quase 70 anos. Ancorada pela Otan e outras alianças (por obra, sobretudo, dos EUA), a ordem mundial permaneceu estável por gerações, trazendo paz e prosperidade para boa parte do Ocidente. Mas, como o Concerto da Europa, ela também às vezes sufocou mudanças e rebeliões. Por muitos anos, fez isso a pretexto de impedir a disseminação do comunismo. Mas também o fez por razões econômicas (como no Oriente Médio) e por simples estabilidade. EUA e aliados apoiaram monarquias e regimes repressivos que resistiram a mudanças.

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Reportagens falam de milhares de voluntários afluindo para os acampamentos do EI na Síria e no Iraque. Líderes ocidentais coçam a cabeça e se perguntam o que motivaria pessoas a ir lutar no deserto. Mas, numa era de frustração, o EI deve parecer para alguns uma luz de mudança e pureza. A cultura “corrupta” de ganância e sensualidade ocidental pode bem ser vista como justificativa para uma reforma violenta.

O antídoto para frustração é ao mesmo tempo simples e difícil: canais para uma mudança verdadeira. Revolução e rebelião oferecem um caminho nessa direção. Foi talvez por isso que Thomas Jefferson tenha dito: “Uma pequena rebelião de vez em quando é tão necessária no mundo político como tempestades no físico”. Mas revoluções também podem libertar a ânsia de violência de nossa natureza animal. Uma revolução amiúde termina como a Revolução Francesa - com terror, anarquia e ditadura. Revolução é remédio forte, mas perigoso.

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Outra possibilidade seria deixar o vapor escapar com guerras. Mas isso é mais perigoso até que uma revolução. A 1ª e 2ª Guerras - válvulas de escape para toda a pressão que se acumulara no século 19 - resultaram em algo como 90 milhões de mortos. 

O mais seguro antídoto para uma era de frustração é prover mecanismos firmes e regulares de mudança, construir formas de governança que permitam mudar quando for necessário - democracia, em outras palavras, o antídoto mais eficaz contra o ódio.

Hoje, porém, a democracia em algumas sociedades ocidentais parece calcificada e ineficaz, a ponto de não atrair o interesse da maioria. O comparecimento eleitoral na maioria das eleições recentes nos EUA foi o mais baixo desde a eleição de Thomas Jefferson em 1804. O senso generalizado de que o governo não consegue refletir as preocupações dos governados origina movimentos de protesto como as campanhas Occupy e o Tea Party. A Europa tem as próprias preocupações sobre o aprofundamento do “déficit democrático”, refletido na ascensão do Partido da Independência do Reino Unido (Ukip) e de outros movimentos anti-imigrantes. Muitos eleitores compartilham a crença de que governos só respondem a interesses mesquinhos e não estão dispostos a aprovar novas ideias ou abordagens. 

Que mudanças fortaleceriam a democracia no Ocidente? É preciso assegurar uma forte competição nas eleições. Quanto mais distritos forem designados como “garantidos” para um ou outro partido, menos democracia haverá. É preciso cuidar de que os votos, e não o dinheiro, determinem as eleições. O mais importante, porém, é que os valores que constituem a base da cada nação precisam receber mais atenção, cuidado e respeito. Um regime bem-sucedido baseia-se fundamente em valores compartilhados. Quando esse senso de valores compartilhados se evapora, nem um sistema perfeitamente equilibrado poderá manter uma verdadeira democracia.

A frustração cede quando um trabalho construtivo absorve nossa atenção. Novos desafios, instituições inovadoras e maneiras melhores de organizar nossas vidas podem nos afastar do desejo insaciável de dilacerar, destruir, matar nossos semelhantes.

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Reformas democráticas podem não ser suficientes para sustentar a maré crescente atual de raiva e frustração. Pode ocorrer que as emoções humanas escoem em vastas ondas e tenhamos chegado a um momento de frenesi que mesmo reformas governamentais não conseguirão conter. Mas das três - democracia, revolução ou guerra - democracia é a escolha mais segura, mais sensata para se tentar. Ela talvez seja nossa “última melhor esperança. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

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Ward Wilson é diretor do Rethinking Nuclear Weapons Project e autor de Five Myths About Nuclear Weapons (Houghton Mifflin Harcour). Escreveu este artigo para Foreign Policy

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