A febre insana das mostras imersivas, que não ensinam o público a ver arte

Nelas, tudo é concebido com outra proposta, a de alienar o público e alimentar o conteúdo do Instagram com selfies

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Não foi um hacker, mas um dos chefões da Microsoft, o advogado Brad Smith, que reconheceu: quando sua tecnologia muda o mundo, você tem de confrontar o mundo que ajudou a criar. Então, está na hora de repensar o efeitos que as mostras imersivas de arte estão provocando. O primeiro deles: elas levam o público a leituras equivocadas das obras que expõem em escala monumental e com alta tecnologia.

A exposição Renoir, em cartaz no Shopping Pátio Paulista, apesar das boas intenções, não foge à regra: quer que o público mergulhe no universo do pintor impressionista francês, mas a profundidade do ambiente virtual é rasa para o autor de As Banhistas, uma das telas replicadas na mostra, na penúltima sala da exposição, montada no piso Jardins do shopping.

Exposicao com reproduções das obras de Renoir no Shopping Pátio Paulista Foto: Daniel Teixeira/Estadão

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Melhor caminhar pouco mais de um quilômetro e ver Renoir ao vivo, no Masp. O museu da avenida Paulista tem nada menos que 12 pinturas de Renoir na coleção, cobrindo quase toda a carreira do artista. A tela Rosa e Azul é a mais popular, retratando as meninas da família do banqueiro judeu Louis Raphael Cahen d'Anvers, uma delas (Elisabeth) executada num campo de extermínio nazista. Em tempo: a tela foi roubada pelos alemães e passou pela casa do militar alemão Hermann Göring, líder do partido nacional-socialista de Hitler, antes de chegar ao Masp, em 1952.

Claro que isso não é assunto para mostras imersivas, mas para museus, onde se pode ver, conhecer a história e verificar a textura e as pinceladas reais, não simulacros. O problema fundamental no mundo contemporâneo parece ser o da incapacidade de contemplar o que quer que seja. Especialmente nas mostras imersivas, tudo é concebido com outra proposta, a de alienar o público e alimentar o conteúdo do Instagram com os chamados Espaços Instagramáveis.

A mostra de Renoir, por sinal, tem um deles na quarta área, Descanso com as Flores, onde o visitante, além de apreciar as flores pintadas por ele, pode tirar fotos. Nesses espaços instagramáveis, o visitante faz selfies para mostrar aos amigos que esteve na exposição – e, claro, para provar que gosta de arte. 

Sentir-se parte integrante ou “entrar” numa tela de Renoir não é difícil, assim como nas obras de Monet, que ganha uma exposição imersiva (Monet le Rêve) a partir de hoje (1) em Alphaville. Renoir criava ambiente desfrutáveis, alegres, correspondendo ao desejo de “pertencimento” do espectador. Mas dá para imaginar que alguém, em sã consciência, queira “fazer parte” do mundo sombrio dos campos de trigo sobrevoados pelos corvos de Van Gogh? Ou que se sinta confortável diante de seu autorretrato com a orelha enfaixada pintado durante um surto psicótico? 

Ambiente da mostra imersiva de Monet, aberta hoje em Alphabville Mira Foto: Mira/Estadão

Óbvio que tais exposições foram pensadas como eventos lúdicos, não mostras artísticas com pinturas reais para contemplação. Na mostra imersiva, uma ou duas explicações sobre o autor e suas criações parecem suficientes. O resto é uma trilha sonora intragável que extermina a arte e os artistas.

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Barulho, é certo, não combina com concentração. Na contramão da intenção pedagógica, esses ambientes virtuais foram pensados como espetáculos para distrair o público, não provocar reflexão. O que importa é registrar o selfie na rede social. É bom para o visitante, para os organizadores da mostra e para o Instagram. Menos para a arte.

Van Gogh, aliás, parece ser a vítima preferencial dessa mania imersiva, adotado como modelo de uma série de mostras do gênero. Os números são estratosféricos: mais de 10 milhões de pessoas visitaram a mostra 'Beyond Van Gogh' no mundo – em São Paulo, realizada no estacionamento do Morumbi Shopping, vendeu 20 mil ingressos antes mesmo da sua abertura.

Visão da exposiçãoimersiva 'Beyond Van Gogh', realizada em março, no Morumbi Shopping. Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

'Van Gogh Live 8K', atual cartaz do Barra Shopping, no Rio de Janeiro, projeta obras do artista e promete uma resolução “nunca antes vista, capaz de dar ao visitante a impressão de estar diante dos traços feitos do próprio pincel”. Tudo a preços igualmente nunca vistos (a partir de R$ 180). O pintor que só vendeu um quadro em vida hoje é, segundo a publicidade do evento, um “impressionante ‘case’ de sucesso”.

Sucesso de marketing e mídia, com certeza, mas o Van Gogh consagrado pela história da arte passa longe desses megaespetáculos de entretenimento que, quase sempre, desembocam na paródia. Tais exposições imersivas, que recorrem a um moderno arsenal tecnológico – projeções múltiplas, realidade aumentada, música ambiental –, fizeram várias vítimas pelo caminho.

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O mundo já viu mostras imersivas de Picasso, Frida Kahlo, Monet, Portinari e até Klimt, mas Van Gogh é imbatível como “espetáculo”: 'Beyond Van Gogh', que passou por São Paulo e foi para Brasília, garante ao espectador um lugar na janela do quarto em que ficou internado no hospício de Arles, no sul da França, para que se tenha a visão exata do ângulo escolhido pelo artista ao pintar A Noite Estrelada, tela de 1889.

A popular série Emily em Paris explorou essa mania internacional de exposições imersivas. A quilômetros de distância das obras expostas nos museus do Louvre e d'Orsay, a americana do título é inserida num ambiente digital para escancarar seu drama amoroso numa mostra imersiva de Van Gogh, associando as pinceladas do holandês em projeções gigantescas à paixão de Emily.

Aexposição'Beyond Van Gogh - ExperiênciaImersiva', um festival de selfies para o Instagram Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A exposição interativa aberta no MIS Experience, em São Paulo em junho, 'Portinari para Todos', queria igualmente colocar o visitante no lugar do pintor, convidando-o a pegar um pincel e passá-lo sobre as obras de Portinari. Como outras mostras imersivas, o que restou foi uma grande, imensa, frustração.

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Portinari foi, sim, um pintor popular, até mesmo por sua posição ideológica, voltada para a democratização da arte. Porém, outros artistas contemplados com essas mostras imersivas eram individualistas e nunca colocaram a ideologia diante do cavalete. Hoje transformados em produtos de consumo, em forma de merchandise e mídia, esses artistas ou são vendidos de forma romantizada, caso de Renoir, ou paródica, apesar de suas obras terem sido produzidas muitas vezes em circunstâncias trágicas – caso de Van Gogh – sem a mínima ilusão de reconhecimento póstumo.

Fora do contexto em que foram criadas, essas obras são livremente interpretadas pelos curadores e usadas de forma arbitrária com olho na bilheteria, o que explica a espetacularização das telas de Van Gogh. Naturalmente, são mostras que pouco ou nenhum compromisso educacional têm com as obras que mostram. O foco é o público, não o artista. Deve haver algo errado com uma sociedade autocentrada que prefere um contato superficial com uma projeção do que um corpo a corpo com a obra real – e, nesse caso, vale a observação anterior sobre a proximidade do Masp (com suas 12 pinturas reais de Renoir) e o shopping que mostra animações das telas do pintor francês. Vários teóricos no passado se dedicaram a encontrar a razão fundamental desse narcisismo da sociedade contemporânea, obcecada por selfies e espetáculos – para lembrar dois deles, Christopher Lasch (autor de A Cultura do Narcisismo) e Guy Debord (A Sociedade do Espetáculo), ambos mortos em 1994.

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Lasch considerava (isso há mais de 30 anos) que havia nesse narcisismo uma falha de caráter e um crescimento doentio no uso do “outro” como espelho, além de uma desvalorização do passado (e do futuro) ao preferir o simulacro às coisas reais. Já o francês Debord, marxista, dizia que o espetáculo é uma forma de dominação burguesa sobre os demais segmentos sociais, aproveitando-se da alienação dos menos letrados, que querem tirar do espetáculo o melhor proveito possível, e não aprender algo com ele.

As exposições imersivas ou interativas parecem dizer que uma exposição tradicional de arte – como a dos museus e galerias – é anacrônica e, de algum modo, inferior, menos dinâmica. Curadores dessas mostras acham que ampliar a pincelada de um artista do tamanho de um prédio “facilita” o entendimento da técnica e do procedimento de um artista, quando o que vale é justamente o contrário: para a imersão numa tela, o que se exige é concentração, contemplação, imaginação e silêncio diante da pintura, tudo o que a alta tecnologia não pode oferecer. Ela vai continuar evoluindo. Pode ser que, no futuro, traga um novo tipo de interação do público com a arte. Mas a obra real continuará insubstituível.  .

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