A gnomonia de 2008

Jayme Ovalle; as cinco categorias criadas há 80 anos pelo excêntrico intelectual paraense continuam atuais

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Daniel Dantas não é dantas. Ainda que nascido na Bahia, o controverso banqueiro seguramente é pará. Tanto quanto, aliás, seu mais encarniçado inimigo, o delegado Protógenes Queiroz, também ele baiano de Salvador, embora talvez este reivindique o direito de ser considerado, ó ironia, um dantas. Sim, os dois adversários têm isso em comum, além do fato de serem naturais da mesma cidade: um visceral, insopitável paraísmo. Mas cessam aí as semelhanças. Quem os acompanhou pela imprensa ao longo do segundo semestre de 2008 sabe que Daniel é também um tanto onésimo, e que Protógenes tem muito de kerniano. São apenas duas, portanto, as hipóteses a descartar: protagonistas mais notórios da chamada Operação Satiagraha, desfechada pela Polícia Federal em 8 de julho passado para combater o desvio de verbas, a corrupção e a lavagem de dinheiro, o banqueiro e o delegado não são dantas nem mozarlescos. Dantas, nessa história, poderia ser apenas - há quem ache - o juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Criminal de São Paulo, aquele que condenou o dono do Banco Opportunity a 10 anos de cadeia, por crime de tentativa de corrupção. Parás, dantas, onésimos, kernianos, mozarlescos - mas que esquisitice é essa que os dicionários não registram? Melhor apresentar desde já os rótulos de que vamos nos valer ao relembrar aqui algumas figuras públicas que ocuparam o noticiário em 2008: trata-se das cinco categorias que o poeta sem versos, compositor bissexto e, sobretudo, extraordinário personagem Jayme Ovalle (1894-1955) criou, na vadiagem de um papo de botequim no Rio de Janeiro, 80 anos atrás, para classificar os seres humanos - todos, sem exceção, sejam eles vivos, falecidos ou ainda por nascer. Os nomes foram tirados de habitués da roda de Ovalle - San Thiago Dantas, Onésimo Coelho, Ari Kerner e Mozart Monteiro - e do Estado onde ele nasceu e viveu até se mudar, adolescente, para o Rio. Para sorte nossa (pois não era costume de Ovalle pôr no papel as suas originalíssimas criações), naquela mesa de boteco estava também seu amigo Manuel Bandeira, que, fascinado, tratou de fixar numa crônica a engenhosa tipologia ovalliana. Batizada Nova Gnomonia, ela se tornou rapidamente um tema imperioso, brincadeira onipresente, beirando a mania, não só nos bares e cafés como onde mais se encontrassem artistas, escritores, intelectuais e jornalistas da época. De outras épocas também, no fio de sucessivas gerações. Em julho deste ano, durante a Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), houve um momento em que, apresentada a novos públicos, a Nova Gnomonia desencadeou um furor classificatório semelhante ao que fora ateado, tantas décadas antes, pela célebre crônica de Bandeira. Seria fulano um dantas? pará? kerniano? onésimo? mozarlesco?, indagava-se em toda parte. E tome discussão (além da famosa aguardente local) nas madrugadas paratienses. A octogenária gnomonia de Ovalle ressurgiu, sem uma ruga, e mostrou ser um metro capaz de medir os personagens de hoje, como Dantas e Protógenes. O nome completo da categoria a que eles pertencem é Exército do Pará, e este se compõe, explica Bandeira, desses "homenzinhos terríveis" que despencam do Norte do País, dispostos a tudo para vencer nos grandes centros do poder político, das finanças, da imprensa, das artes, das letras. Ruidosos, abrem espaço a cotoveladas, brigam, se impõem. Ao tempo em que a gnomonia foi formulada, o alvo preferencial desses "sujeitos habilíssimos, audaciosos, dinâmicos" era o Rio de Janeiro, então capital da República; hoje, é também São Paulo e Brasília. Preconceito contra o pessoal do Norte? Nada disso, pacificou o pernambucano Bandeira: sempre em direção aos centros do poder, as fileiras do indômito exército podem mover-se a partir de qualquer ponto do País, não necessariamente do Pará. Prova disso é que, pouco tempo depois da criação da gnomonia, os parás mais impetuosos eram, no outro extremo do Brasil, os gaúchos, encabeçados por Getúlio Vargas, que a Revolução de 1930 levara à chefia da Nação. Na entrada da década de 1990, desceram uns alagoanos, e deu no que deu. Pode ser que venha aí uma pará de Minas, a ministra Dilma Roussef, para quem Lula supostamente estaria esquentando a cadeira presidencial. Por que não um baiano à testa de um banco e outro, com nome grego, no comando de uma investigação policial cuja denominação, traduzida como "firmeza na verdade", foi pescada no sânscrito? Antes que se pense que o Exército do Pará só recruta figuras, digamos, polêmicas, dadas a freqüentar as páginas policiais, convém lembrar que a ele pertenceram, entre outros nobres de espírito, Santo Inácio de Loyola, José de Anchieta e o padre Antônio Vieira. E que ninguém atire a primeira pedra, uma vez que nenhum integrante das demais categorias gnomônicas escapa de "gravitar", em algum momento, para o Exército do Pará, conforme descobriu Sérgio Buarque de Holanda, um dos vários pensadores que contribuíram para enriquecer a Nova Gnomonia. De resto, não existe categoria quimicamente pura - o rótulo é determinado pela característica dominante na pessoa, nada mais. Nem mesmo os dantas - "os homens de ânimo puro, nobres e desprendidos, indiferentes ao sucesso na vida, cordatos e modestos, ainda quando tenham consciência do próprio valor", definiu Bandeira - atravessam a vida sem pelo menos um episódio de paraísmo explícito. Terá sido assim com o próprio São Francisco de Assis, provavelmente o representante mais legítimo dessa elite gnomônica a que todo o mundo gostaria de pertencer. A recíproca, porém, não é verdadeira, e eis aí uma explicação para o fato de o pará Daniel não gravitar jamais para a órbita dos dantas. Já o seu lado onésimo é bem evidente. Os integrantes dessa categoria, dizia Vinicius de Moraes, outro teórico da Nova Gnomonia, "são as pessoas que têm o dom de esfriar ambientes, de modificar o metabolismo próprio das situações, de deixar as pessoas mal à vontade". A coisa mais onésima do mundo, exemplificava Jayme Ovalle, é um árabe num elevador. Os que carregam essa marca dão azar, dizia Manuel Bandeira, acrescentando: um onésimo é alguém que "duvida, sorri, desaponta", e em cuja presença "ninguém tem vontade de chorar". De fato, não dá para imaginar, aos pés de Daniel Dantas, Protógenes Queiroz desfeito em lágrimas, a não ser, quem sabe, de raiva. Mas tudo pode acontecer, pois o delegado, como já se disse, soma à sua natureza pará uns toques de kerniano - e a principal característica de um kerniano é ser impulsivo. Pelo menos em parte, isso pode explicar o espalhafato com que Protógenes prendeu Daniel Dantas e o megainvestidor Naji Nahas naquele 8 de julho, num arrastão matinal que recolheu também o ex-prefeito paulistano Celso Pitta, metido, há quem diga, num pijama comprado no varejão multitudinário da Rua 25 de Março, no Centro de São Paulo. Nesse particular, o delegado joga no mesmo time do estourado D. Pedro I - só um kerniano genuíno, depois de ler uma carta em cima de um cavalo, desembainharia a espada e daria um grito às margens de um córrego. O poeta francês Paul Verlaine também o era, e deu provas disso ao abandonar casa, mulher e filhos em 1872, indo vagabundar na trepidante companhia de um jovem colega recém-egresso da província, o sedutor Arthur Rimbaud. O próprio Jesus Cristo, obrigatoriamente um dantas, teve lá o seu momento kerniano, ao expulsar do templo os vendilhões. A duas semanas de terminar, o ano de 2008 teve um fecho kerniano a mais não poder, quando, em meio a uma entrevista coletiva em Bagdá, o jornalista iraquiano Muntadhar al-Zaidi arremessou seus sapatos em direção a George Bush, por pouco não atingindo o rosto do presidente americano. Arma pesada, ainda que não de destruição em massa: Al-Zaidi calça 42, bem mais que os 36 de ACM Neto. Mas espere aí: então a Nova Gnomonia não se aplica apenas aos seres humanos? Pode uma sapatada encontrar abrigo numa de suas cinco categorias? Pode, desde que Vinicius de Moraes, entusiasmado com a invenção de Ovalle, tomou a liberdade de alargar os territórios da tipologia para neles assentar também os animais, os seres inanimados e até aquilo que não chega a ser um ser, como a serenata em Ouro Preto e o suicídio em Paquetá, duas ocorrências mozarlescas. Entre outras características, os que se congregam nessa categoria tendem a acreditar no esperanto e com facilidade choram no cinema. Dela fazem parte, sempre com maiúsculas, a Mulher, a Lua e a Vida, dizia Vinicius, que obviamente pertencia à turma. No ano que termina, um bom exemplo de mozarlesco é o campeão olímpico César Cielo, cujas lágrimas ameaçam fazer transbordar as piscinas onde ele pesca medalhas. Originárias de outra fonte, as águas que inundaram Santa Catarina e Minas Gerais em 2008 devem ser vistas como manifestação de uma natureza kerniana. O mesmo se diga da crise econômica mundial, aquela que, segundo Lula no começo de outubro, chegaria ao Brasil, se chegasse, amansada em simples, mozarlesca, quase dantas "marolinha". *Humberto Werneck é jornalista e escritor, autor de O Santo Sujo (Cosac Naify), biografia de Jayme Ovalle recém-premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) OS TIPOS OVALLIANOS DANTAS - São bons, puros, nobres, desprendidos, indiferentes ao sucesso na vida. KERNIANOS - Impulsivos, são capazes de barbaridades, mesmo quando têm bom coração. MOZARLESCOS - Sentimentais e chorões, crêem no esperanto e no sufrágio universal. ONÉSIMOS - Até que não são más pessoas. Mas inibem, esfriam o ambiente e dão azar. PARÁS - Para eles, o que mais conta é o dinheiro, a glória nas artes, o poder político. Mesmo sem uma obra consistente, o poeta e compositor Jayme Ovalle (1894-1955) influenciou artistas como Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes por sua poética maneira de se portar no mundo. Azulão, com letra de Bandeira, é sua música mais famosa.