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A graça, a performance, o sofrimento

Para professor, o que nos fascina nos esportes é série de fenômenos entre o desempenho e o ato de julgá-lo

Por Monica Manir
Atualização:

Hans Ulrich Gumbrecht é um investidor compulsivo. Em esportes. Aposta alto no Stanford Cardina Football, time de futebol americano de Stanford, no norte da Califórnia, onde mora. Aposta no beisebol dos Yankees, no hóquei do Montréal Canadiens e no soccer do Chelsea. Aposta no escuro, porque investe em emoção. Mesmo sob o fio da espada de um possível dissabor, freqüenta as arquibancadas ou se gruda à TV, como está a fazer agora na Olimpíada de Pequim, simplesmente fascinado pela graça, pelo timing, pelo sofrimento, pela intensidade que circunda um evento esportivo. Veja também: A briga da China com a globalização Hans Ulrich Gumbrecht também é uma exceção à regra. Não fosse pelo renome como professor de literatura da Universidade de Stanford, autor de Modernização dos Sentidos (Editora 34) e Em 1926. Vivendo no Limite do Tempo (Record), escreveu uma apologia ao esporte, superando o obstáculo que ele mesmo diz ser típico dos intelectuais. Qual seja: gostar de esportes. A grande provocação de Elogio da Beleza Estética (Companhia das Letras) é ser exatamente um elogio. "Hoje é chique para os intelectuais torcer para um time, desde que seja um de segunda liga, e ainda assim mantendo a distância crítica", diz. Claro que ele não se agüenta e detecta aspectos negativos. Juízes estritos às regras e falso moralismo em torno do doping o irritam. Não suporta barreiras ao prazer de assistir à genialidade, ainda que seja em videotape. Sim, ele canonizou a seleção canarinho de 70. Mas está aberto a novas emoções. Que modalidades mais fascinam o espectador na Olimpíada? Hoje, os esportes dominantes no mundo são os coletivos: futebol, basquete, vôlei, hóquei. Mas, historicamente, isso é bem recente. Os esportes de equipe não existiam entre os gregos. Eles passaram a ser importantes na segunda metade do século 19 e emergiram até o nível atual mais ou menos na época do primeiro campeonato mundial de futebol, em 1930. Uma das razões para organizar as Copas do Mundo foi que, nos Jogos Olímpicos de 1924 e 1928, o futebol era central. Os organizadores da Olimpíada se preocuparam com tanto destaque porque sempre existiu a suspeita, real até, de que jogadores de futebol fossem profissionais, e não amadores. O que impressiona é que, num mundo em que os esportes mais populares são os coletivos, a ênfase da Olimpíada sejam as modalidades individuais. O clímax continua sendo as semanas de atletismo, de natação, de ginástica. Apesar de existirem competições coletivas nessas modalidades, elas estão voltadas para o indivíduo. Isso obviamente não exclui o futebol, mas ele é bastante marginal na Olimpíada. E o beisebol e o softbol, por exemplo, serão eliminados da próxima edição. Por que os esportes individuais têm essa preponderância? Para mim, é um enigma completo. Não sei. Mas até nos Jogos de Inverno isso acontece. A competição mais forte de hóquei sobre gelo é a Americana-Canadense, que muitas vezes ocorre simultaneamente aos Jogos de Inverno. Isso quer dizer que os cem melhores atletas do mundo não participam do hóquei sobre gelo nesses jogos. No basquete, muitos astros não querem sair na Olimpíada, talvez porque sejam tão superestrelas que os jogos não representem o teatro adequado. Entre as provas individuais, qual a mais envolvente? A competição de ouro continua sendo a corrida dos 100 metros masculino. Em primeiro lugar porque essa prova tem uma longa história de protagonistas, começando em 1936 com Jesse Owens, o atleta do século 20 e o primeiro afro-americano a se destacar internacionalmente. Por contingência, a prova refletiu certa situação política mundial, já que, durante anos, a nação dominante nos 100 metros masculinos foram os EUA. Isso não significa que não houve concorrência. Lembro que, em 1960, quem chegou em primeiro foi um alemão que, um mês antes dos Jogos Olímpicos, já tinha obtido o recorde mundial. Hoje, o cenário é mais amplo. A ginástica, por exemplo, ganhou destaque, talvez mais a feminina que a masculina. Há um fascínio olímpico por ela, tanto que os campeonatos mundiais de ginástica não são exibidos na televisão internacional. A falta de competição direta tira um pouco da atração pelo atletismo? É fato que, nos campeonatos nacionais, a grande maioria dos espectadores do atletismo é composta de ex-atletas, treinadores, gente entendida no assunto. Mas não é assim na Olimpíada. Ao mesmo tempo, para assistir a uma competição assim, é preciso lembrar que em muitos momentos nada acontece. Realmente nada. Numa corrida de 10 mil metros, os primeiros 9 mil são aquilo que se vê. Mas existem instantes supertensos, interessantes, trágicos, finais dramáticos, em que três, quatro chegam quase ao mesmo tempo. Um deles pode ganhar por 3 centímetros de distância, só confirmados pela FotoFinish. Acho que sua pergunta está baseada na monocultura do futebol. Eis um dos poucos esportes que pedem atenção quase permanente. O americano está acostumado ao beisebol, um jogo de 4 ou 5 horas que muitas vezes tem só 5 minutos instigantes, e isso numa tarde boa. Isso não significa que seja uma coisa negativa. É apenas uma forma diferente de distribuir o tempo na cabeça do espectador. Essa é uma das razões principais para a resistência dos americanos ao futebol. Não se pode sair nem para ir ao banheiro, nem para comprar um hambúrguer. É preciso estar o tempo todo atento. O historiador norte-americano Alfred Senn afirmou, nesta semana, que ''os Jogos são o maior reality show da TV do mundo''. Os flagrantes da tecnologia tiraram a naturalidade do movimento dos atletas? Há possibilidade de serem graciosos novamente? O entorno midiático de hoje produz uma consciência tal como se estivéssemos em um grande teatro. Existe certa tensão, mas o atleta que não consegue bloquear isso no momento decisivo não vai ganhar nada. O craque que pensa na graça que deseja produzir na hora do chute nunca vai marcar o gol. Para mim, a graça vai sobreviver. As competições exigem cada vez mais preparação e concentração num momento-chave. De qualquer forma, a performance do atleta pode melhorar na medida em que ele se distancia da consciência? Sem dúvida. Na grande maioria dos esportes, com raras exceções, bloquear a consciência é uma condição importante. Em O Homem sem Qualidades, livro fantástico de Robert Musil, literato austríaco, ele fala seriamente da genialidade de um cavalo de corrida. Existe a genialidade de um grande atleta no momento da competição que tem a ver com essa inconsciência. Um atleta que tenta produzir graça conscientemente é o Beckham, e ele nunca ganhou nada importante. É um homem muito bonito, pelo menos é o que diz minha mulher. Ganhou com o Manchester United, é famoso, mas até na fase boa sempre decepcionou nos jogos decisivos, seja na seleção inglesa, no Manchester e hoje na Liga Americana. Ele tem consciência demais da produção da graça. Outro caso é do Ronaldinho Gaúcho, que perdeu a capacidade de não pensar em si mesmo. Falando em Ronaldos, ambos, o Gaúcho e o Fenômeno, perderam a forma recentemente, o que provocou reações negativas nos espectadores. Nem sempre, porém, o sobrepeso prejudica a performance do atleta. Por que ele incomoda? O sobrepeso é visto como feio no mundo ocidental do século 20, que entende que corpo lindo é corpo funcional. Mas veja você que os homens percebidos como os mais eróticos pelas mulheres na cultura japonesa são os lutadores de sumô, grandes protagonistas de propaganda de quaisquer produtos. Não têm reputação de serem monstruosos. Não mesmo! O senhor destaca as jogadas como um dos fascínios do esporte. O que é entendida como uma jogada bonita? Ou uma jogada feia? Uma jogada bonita é uma jogada imprevisível, talvez até previamente preparada, mas sem que o espectador saiba disso. Um toco bem dado no basquete é uma jogada de anulação, porém bonita. Mesmo os lances do goleiro num 0 a 0. Tenho um grave problema em falar em jogo feio, talvez porque não exista uma qualidade intrinsecamente negativa de feio nos esportes. Na última Eurocopa, comentei Espanha e Itália, ambos jogando inteligentemente bem, mas se paralisando. No final, a Espanha venceu nos pênaltis. Disseram que eu só falava de história, mas não havia nada a comentar! O jogo foi, entre aspas, feio. Uma falta intencional é feia, mas não necessariamente. Achei aquela cabeçada do Zidane fantástica. Mas é quase consenso que beleza tem relação íntima com golpe limpo, sem violência, não? Vivemos num mundo de violência em que há um tabu contra ela, como se estivesse excluída do cotidiano. Então não se consegue associar apreciação estética a violência. Só que ela é completamente aceitável no futebol americano, por exemplo, e eu acho esse esporte muito limpo. Para quem não conhece as regras, passa a impressão de ser feio. Basicamente, futebol americano é uma combinação de violência lícita com inteligência estratégica, uma ocupação de espaço de corpo contra a resistência física de outros corpos. É tudo completamente legal, com um nível estratégico de inteligência infinitamente superior ao futebol, que é mais intuitivo. Um jogador de futebol americano profissional precisa saber de cor 300, 400 jogadas. Quando o técnico diz, por exemplo, 323, cada jogador sabe o que fazer. O problema para o atleta da defesa é não deixar o atacante passar e ocupar aquele espaço. Existem golpes limpos e lindos, em que o outro jogador fica paralisado imediatamente. Se existe esse tabu contra a violência, o que atrai tantos espectadores a uma luta de boxe? Vou dar minha opinião, que seus leitores podem achar tipicamente americana, tipicamente gringa. Em esportes de confrontação, como o boxe - de certa maneira o xadrez e o tênis também são assim -, o fascínio estético é muito mais existencialista, muito diferente da estética da graça, na qual você tem o prazer de ver emergir uma forma sem intenção, uma forma temporalizada, que depois vai desaparecer. A estética do boxe é presenciar uma pessoa se expondo potencialmente ao perigo da morte. Até o século 20 não existia competição de boxe que terminasse sem nocaute. Sobre isso, Brecht, que era um grande torcedor desse esporte, disse certa vez que a decadência do boxe começa no momento em que as federações internacionais permitem um final de combate por pontos. Hoje fica tudo muito protegido, aquele consenso da classe média de exclusão da violência, a vida toda bem arranjada. Tudo bem, mas devo dizer que acho o boxe antigo fascinante. Não tenho intenção de que alguém morra, mesmo porque a morte de um pugilista é sempre um acidente, não faz parte da luta. O esporte é terreno fértil para quem tem espírito autodestrutivo? Uma pessoa que opta por esse tipo de competição tem o fascínio de se expor ao perigo de morte, o que acho perfeitamente lícito. Para os alpinistas que morreram na semana passada depois de uma avalanche do K2, aquilo fazia parte do atrativo. Se fosse para ver a paisagem, teriam tomado um helicóptero. Nesse mundo social-democrático, prevalecem os valores de proteção, mas acho que as pessoas têm o direito de fazer um ataque ao K2, mesmo com aquele fim triste. Não tem nada de trágico no sentido pleno de trágico porque eles bem sabiam do perigo. Dizer que logo depois foram penalizados com a morte? Não! A possibilidade da avalanche faz parte daquele "jogo". Por isso acho que uma competição de boxe com todas aquelas proteções faciais não faz muito sentido. Torna o boxe um jogo de nintendo. O senhor mencionou o xadrez como um esporte de confrontação. Onde está o caráter violento dele? Uma vez organizei um encontro em Stanford entre o Kasparov, ex-campeão mundial de xadrez, e um técnico famoso de futebol americano. Eles tiveram uma discussão absolutamente incrível. Compartilharam vários problemas de complexidade, de estratégia, de frustração por querer fazer uma jogada e não levá-la adiante. Kasparov insistiu em que o xadrez tem potencialmente uma tensão física e, nesse sentido, seu potencial de violência é muito forte. Quando se podia fumar nas partidas, muitas vezes um jogador apagava seu cigarro intencionalmente na mão do concorrente. Kasparov acha que o grande jogador de xadrez precisa ao menos de cinco horas diárias de preparação física. É impossível controlar e viver sob a pressão intelectual de um campeonato de alto nível sem esse tipo de preparo. Há como evitar o doping nas competições? Em que medida o espectador se sente tolo por ter torcido por um atleta dopado? A classe média globalizada tem um desejo moralista inaudito. Isso produz em parte o excesso de informação sobre doping na cobertura jornalística. Permite que a pessoa se enfureça moralmente. Mas que horrível! Que irresponsável! Vejo certa hipocrisia nisso porque exigimos dos atletas uma alta performance física, mas eles são os únicos na sociedade que não podem usar medicamentos. Se você hoje levantar com dor de cabeça, o que vai fazer? Vai tomar uma aspirina. Eu tenho minha sinusite. O que estou fazendo neste momento? Tomo antibióticos. Só os atletas de alta performance não têm esse direito. É muito complicado propor uma solução, mas acho ridícula aquela exclusão absoluta do doping. O esporte mais difícil fisicamente é o ciclismo. Todo mundo sabe que não dá para acabar um Tour de France sem doping. Quase conseguiram destruir esse evento maravilhoso por um moralismo idiota. É claro que o Lance Armstrong se dopou, mas continua sendo um grande atleta inclusive por causa do uso inteligente do doping. Ninguém conseguiu provar que ele de fato consumiu aquelas substâncias. Além disso, sempre esteve bem preparado nos momentos decisivos e parece que sua saúde é muito boa. O senhor também critica as regras rígidas para julgar uma prova de ginástica artística, por exemplo. Como resolver esse dilema? Sempre achei isso problemático. Um esporte tão central na Olimpíada é desproporcionalmente aquele que precisa do julgamento estético de um juiz. A patinação no gelo e alguns dos aparelhos de ginástica sofreram o prejuízo da ambição dos juízes em manter um padrão antigo de beleza vindo do balé clássico. O juiz no futebol é diferente. Suas tarefas são manter regras básicas e proteger os jogadores de lesões. Não há julgamento estético. Ele não vai decidir se aquele foi um gol bonito ou feio. O futebol é, de fato, o mais democrático dos esportes? Não é verdade. Isso vale muito mais explicitamente para o futebol americano, em que se precisa tanto de jogadores altos como baixos, em que convivem tanto afro-americanos quanto havaianos de origem indígena. A razão do sucesso mundial do futebol é ser muito barato. Se você tiver um bola e quatro pedras, já pode entrar em campo. Sua complexidade quanto às regras também é reduzida. Afirmar que é o mais democrático é como dizer que que a literatura brasileira é melhor do que a alemão ou a italiana. Tampouco é pior. É apenas diferente. O técnico da seleção brasileira, Dunga, declarou o seguinte nesta semana: "Todos falam que as coisas têm de mudar, mas ninguém quer mudar o nosso futebol. Querem que continue sendo o Brasil lá de trás''. O saudosismo interfere no gostar ou não gostar? Tenho 60 anos. Vejo futebol desde o dia 4/7/1954, quando tinha 6 anos, era a Copa do Mundo e a Alemanha ganhou pela primeira vez. Ou seja: já vi muito futebol na vida. Tenho uma coisa nostálgica, admiro o futebol dos anos 70, da seleção brasileira canonizada como a melhor de todos os tempos. Vi na televisão o primeiro campeonato ganho pelo Brasil, em 1958, com Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagallo. Foi incrível! Claro que qualquer time medíocre de hoje ganharia por cinco gols ou mais daquele. O futebol atual é atleticamente muito mais forte, tem mais estratégia, mas isso não vai necessariamente contribuir para a beleza da competição. Poderíamos dizer que o futebol tem ido além de certa otimização estética e se presta menos ao protagonismo. No melhor estilo social-democrata alguns diriam que é melhor. No meu estilo nostálgico, acho pior. Cristiano Ronaldo é um grande nome, mas hoje é quase impossível ser Pelé ou Maradona. Nem falo em Mané Garrincha, meu jogador preferido de todos os tempos. Seu barroquismo não cabe hoje. Não se tem tempo para isso.

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