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A grande marcha do século 21

Pela primeira vez na história da humanidade, a população das cidades supera a do campo

Por Suketu Mehta
Atualização:

Há uma grande marcha em curso no planeta - o movimento, sem precedentes na história, do campo para a cidade. Só na Índia e na China, 620 milhões de pessoas vão se mudar do meio rural para o urbano nas próximas duas décadas. E já neste ano, pela primeira vez, mais pessoas vivem nas cidades que no campo. Nós nos tornamos, enfim, uma espécie urbana. Existe uma enorme distância entre o padrão de vida dos moradores das cidades e os do campo no mundo em desenvolvimento. E, diferentemente de séculos anteriores, quando os ricos se banqueteavam em seus palácios, bem distantes da zona rural - e eram assim míticos e inatingíveis para os aldeões -, hoje a televisão e a internet colocaram uma parede de vidro diante dos estilos de vida das classes médias em acelerada expansão, com suas roupas de grife e seus carros tinindo de novos, para a admiração de cada aldeia ou vilarejo dos países em desenvolvimento. Com o nariz colado no vidro, os aldeões vêem por conta própria que podem viver melhor - bastando, para isso, migrar. O aquecimento global ampliará esse fenômeno, podendo transformar a fuga dos campos assolados por secas e enchentes em verdadeiro estouro de boiada. A migração também colocará desafios tremendos para a estrutura política em sua tentativa de acomodar e controlar essa população em deslocamento. Os aldeões precisam de autorizações cuidadosamente racionadas para viver em cidades chinesas. Por isso há muita gente morando ilegalmente em Xangai, Pequim e Shenzhen, assustada, à sombra dos novos edifícios que reluzem. Existe um risco enorme de explosões sociais caso as autoridades decidam deportar essas pessoas. Um arquiteto de Bombaim explicou-me certa vez que planejar qualquer coisa em sua cidade é um exercício, digamos, fútil. Quanto mais bonita você a deixa - quanto melhores as ruas e ferrovias que você constrói, quanto mais se melhora a habitação -, maior o número de pessoas que será atraído para Bombaim vindo das aldeias carentes, inundando as ruas, os trens, as casas. A única solução que resta é mantê-los na zona rural. Se você resolver os problemas no campo, resolve, como um feliz efeito colateral, os problemas das cidades. Os problemas, porém, não serão solucionados a menos que a agricultura se torne novamente viável no mundo em desenvolvimento. E isso não acontecerá a menos que o sistema internacional de comércio e de tarifas agrícolas seja mais eqüitativo. Quando o algodão indiano ou africano é mais caro no mercado mundial que o algodão americano - por causa dos generosos subsídios que o governo dos Estados Unidos concede a seus plantadores -, então o agricultor indiano ou africano dirá a seus filhos para tomarem o primeiro trem para a cidade e procurar trabalho nas condições que houver, e enviar dinheiro para o restante da família. Todo ano, milhares de agricultores indianos se matam porque não conseguem saldar seus empréstimos agrícolas - empréstimos que se tornaram cada vez mais essenciais na medida em que o preço das sementes transgênicas e do maquinário agrícola está fora do alcance dos agricultores de subsistência que constituem a maioria dos agricultores indianos. É do interesse de todos nós - onde quer que moremos - ajudar as pessoas que vivem nas megacidades. A situação desesperada dos moradores de favelas em cidades como Bombaim afeta diretamente a sorte econômica de moradores de Nova York e Los Angeles. É importante para Londres compreender Bombaim e, para Bombaim, compreender Londres - pela simples razão de que a próxima geração de londrinos está nascendo em Bombaim. E, dado o crescimento fenomenal da economia indiana, que se aproximará de 10% este ano, é igualmente possível que a próxima geração de moradores de Bombaim esteja nascendo em Londres. Por que as pessoas ainda vivem nas megacidades do mundo em desenvolvimento? Todo dia elas promovem ataques aos sentidos individuais - no momento em que a pessoa se levanta, no transporte que a leva ao trabalho, nos escritórios onde trabalha, nas formas de entretenimento de que ela dispõe. As emissões de gases são tão pesadas que o ar ferve como sopa. Há gente demais se acotovelando nos trens, nos elevadores, quando se vai para casa dormir. A pessoa pode viver numa cidade litorânea, mas o único momento em que a maioria consegue chegar perto do mar é por cerca de uma hora, numa tarde de domingo - e numa praia imunda. Isso não pára quando a pessoa dorme, pois as noites trazem os mosquitos vindos dos pântanos, os marginais que arrombam a porta, os alto-falantes barulhentos das festas dos ricos e dos pobres. Por que então a pessoa quer deixar sua casa de tijolos na aldeia, com suas duas mangueiras e a vista de pequenos morros, para viver nas cidades? Para que algum dia seu filho mais velho possa comprar um apartamento de quarto e sala na periferia da cidade. E que o filho mais novo possa ir além disso, para os Estados Unidos ou a Europa. Seu desconforto é um investimento. Como colônias de formigas, as pessoas nas favelas facilmente sacrificarão seus prazeres temporários para um maior progresso da família. Um irmão vai trabalhar e sustentar todos os outros, e ganhará profunda satisfação do fato de que seu sobrinho esteja se interessando por computadores e provavelmente irá para a América. As cidades funcionam a partir de redes de assistência invisíveis. Numa colônia favelada não há indivíduos, há apenas o organismo. Há círculos de fidelidade e obrigações dentro do organismo, mas o círculo menor é a família. Não há nenhum círculo em torno do indivíduo. Quando as pessoas migram do campo para a cidade elas estabelecem aldeias na cidade. Olhando de perto a estrutura de uma favela urbana, ela com freqüência reproduz a estrutura física da aldeia de onde se origina a comunidade predominante na favela. Em Bombaim, vi canais de esgoto batizados com o nome de rios das aldeias distantes; pequenos santuários que abrigam as mesmas divindades dos templos da terra natal; e o plantio de mangueiras e árvores originárias da província que foi deixada para trás. As ruas sinuosas da favela reproduzem a topografia em ziguezague da aldeia. A favela lúgubre é assim superposta pela aldeia da memória. Para o recém-chegado, isso aplaca a nostalgia e promove a familiaridade. Um fator na migração que os economistas encontram dificuldade de mensurar, mas não deve ser subestimado, é a atração inerente à vida metropolitana para o jovem do campo. Ela não é apenas um lugar onde se consegue renda; para alguém que passou a vida toda numa aldeia, onde o entretenimento noturno em geral consiste em teatro popular ou cultos da igreja local, a agitação de uma cidade grande - com suas celebridades glamourosas e luzes brilhantes - exerce a mesma atração que Nova York ainda exerce nos incansáveis adolescentes de Peoria, no interior dos Estados Unidos. Um motorista de táxi de Bombaim certa vez me disse por que continua vivendo na cidade: "Lata Mangeshkar uma vez andou no meu táxi. Bem aí, onde você está sentado!" Lata Mangeshkar é a voz que emana de 1 milhão de rádios transistores por todo o subcontinente, o rouxinol de Bollywood, uma figura mítica para pessoas como o taxista. Ele vem de uma aldeia do norte onde a coisa mais próxima que os moradores chegam de ídolos como Mangeshkar é vê-los na televisão. Quando o taxista contou para as pessoas de sua aldeia que a famosa cantora havia honrado seu pequeno táxi Fiat, elas não acreditaram. Acharam que estava inventando. Esses momentos intangíveis de exultação sustentam muitos migrantes no estresse da vida da cidade grande. Embora a urbanização do planeta possa ser um desastre para o meio ambiente, ela traz alguns benefícios. Quando as pessoas se mudam para as cidades, o PIB do país também cresce em conseqüência disso. Os migrantes são pessoas zelosas, para sobreviver e para vencer; eles são mais motivados porque têm mais a ganhar ou a perder que o nativo. E há muitas evidências para mostrar que a migração internacional é o melhor modo de lidar com a pobreza do mundo. Os 150 milhões de migrantes trabalhando em países ricos remetem US$ 300 bilhões por ano para nações em desenvolvimento - uma cifra maior que toda a ajuda e investimento estrangeiro direto que os países ricos fazem no mundo em desenvolvimento. Então, a migração é a maneira mais eficaz de levar dinheiro para os pobres, desde que os migrantes cuidem de que esse dinheiro, geralmente enviado em pequenas parcelas de US$ 100 ou 200, seja gasto de maneira eficiente por suas famílias, sem nenhum custo burocrático além da transferência bancária. Mais de um terço dessas remessas vai para áreas rurais nos países de onde os migrantes vieram. É o exemplo mais flagrante dos pobres se ajudando uns aos outros. O dinheiro que não é gasto imediatamente pelas famílias poderia ser uma fonte significativa de financiamento do desenvolvimento, via esquemas de microcrédito e afins. Existe, pois, uma razão pela qual as pessoas continuam se mudando para cidades como Bombaim, apesar de todos os seus problemas. "Bombaim é um pássaro de ouro", disse-me um morador de favela cujo irmão foi baleado e morto pela polícia num tumulto étnico, que vive num casebre sem água encanada nem banheiro. Tente entender, se puder: "O pássaro de ouro é rápido e arisco, e você precisa dar duro para apanhá-lo. Mas, quando o tem nas mãos, uma fortuna fabulosa se abre para você". Essa é uma razão pela qual as pessoas ainda querem vir para cá, deixando as árvores e os espaços abertos agradáveis do campo, enfrentando o crime, o ar e a água ruins. A cidade grande é um lugar onde sua casta não tem importância, onde uma mulher pode comer sozinha num restaurante sem ser molestada e onde alguém pode casar com a pessoa de sua escolha. Para os jovens de uma aldeia indiana, africana ou chinesa, o chamado da cidade não tem a ver só com dinheiro. Tem a ver também com liberdade. *Suketu Mehta, premiado escritor indiano radicado em Nova York, foi finalista do Prêmio Pulitzer 2005 com Maximum City, em que relata sua vida em Bombaim, onde cresceu Natureza em fúria 2007>> 2/4 Tsunami no Pacífico Ondas provocadas por um terremoto de 8,1 graus na escala Richter inundam duas cidades e matam pelo menos 30 pessoas nas Ilhas Salomão, no Oceano Pacífico. O tsunami destrói 900 casas e afeta 5 mil pessoas. 11/6 Sinais do aquecimento Mais de cem pessoas morrem na Índia e no Paquistão devido a uma onda de calor com temperaturas que beiram 50 graus. No Leste Europeu, termômetros atingem 45 graus e mais de 40 pessoas morrem. Em julho, as altas temperaturas fazem mais 500 vítimas na Hungria, onde os termômetros registram 41,9 graus. 17/7 E a terra tremeu... Dois fortes terremotos atingem o Japão, danificando uma das maiores usinas nucleares do mundo e causando o vazamento de água com material radioativo. Nove pessoas morrem, 900 ficam feridas e 7.800, desabrigadas. Em agosto, um tremor de 8 graus sacode o litoral peruano e causa a morte de 500 pessoas. Três meses depois, a terra volta a tremer no Peru e os reflexos do abalo de 7,7 graus são sentidos em São Paulo. Em dezembro, o norte de Minas Gerais é atingido por um tremor de 4,9 graus, o primeiro a causar uma morte no Brasil. 23/7 Inglaterra submersa As regiões sul e oeste da Inglaterra enfrentam as piores enchentes do país em 60 anos. Milhares de pessoas são obrigadas a deixar suas casas e sofrem com a falta de água potável e eletricidade. 17/8 Retração do gelo ártico O encolhimento da cobertura gelada do Pólo Norte bate um novo recorde: 5,23 milhões de quilômetros quadrados. Estudo realizado por cientistas dos EUA e da Polônia aponta que, por causa do aquecimento global, o Oceano Ártico poderá não ter gelo no verão dentro de apenas seis anos. 24/8 Relíquias ameaçadas A Grécia é tomada por 107 focos de incêndio florestal, que matam quase 70 pessoas e ameaçam as ruínas de Olímpia e o Templo de Apolo, no sul do país. Em outubro, uma série de incêndios atinge o sul da Califórnia (EUA). O fogo devasta milhares de hectares de florestas e áreas residenciais. Oito pessoas morrem e cerca de 600 mil são forçadas a abandonar suas casas, inclusive estrelas de Hollywood. 15/11 Ventos da destruição Em sua passagem por Bangladesh, o ciclone Sidr deixa 3.500 mortos e milhões de desabrigados. Em agosto, o Caribe e a península mexicana de Yucatán já haviam sido castigadas pelo furacão Dean, de categoria 5 - a máxima da escala Saffir-Simpson. Mais de 40 pessoas morreram. O estrago não foi maior devido à baixa densidade populacional. Em setembro, o furacão Félix, também de categoria 5, atingiu a América Central e deixou mais de 130 mortos.

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