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A guerra sul-americana de Chávez

Iniciativas estratégicas do líder venezuelano podem dar ao conflito interno colombiano repercussão regional

Por Demétrio Magnoli
Atualização:

O presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, veio ao Brasil dizer a Lula que a cessão de bases militares para os EUA faz parte da antiga cooperação entre os dois países no combate ao narcotráfico e à guerrilha. Na visita, repetiu a acusação de que o venezuelano Hugo Chávez fornece apoio logístico e material às Farc colombianas. Chávez, por seu lado, qualificou como fraude as informações sobre a transferência de equipamento bélico da Venezuela para as Farc e acusou a Colômbia de servir como plataforma para uma presença militar estratégica dos EUA na América do Sul. Os argumentos defensivos dos dois presidentes são falsos. Mas as acusações de ambos são verdadeiras - e uma está conectada à outra.

 

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O chavismo não é um caudilhismo tradicional, pois a "revolução bolivariana" é um empreendimento internacional. Depois de Simón Bolívar, o maior herói de Chávez é o caudilho Cipriano Castro, que governou a Venezuela no início do século 20 e sonhou com a restauração da Grã-Colômbia. O argentino Raul Ceresole, primeiro assessor ideológico de Chávez, definiu como prioridade do chavismo a restauração do efêmero Estado bolivariano que abrangia Venezuela, Colômbia, Equador e Panamá. Essa é a base doutrinária da aliança entre o regime venezuelano e as Farc.

 

No final de 2007, o bufão de Caracas descreveu as Farc como um "movimento bolivariano legítimo" e enxergou na mediação da crise dos reféns na Colômbia a oportunidade para obter o reconhecimento internacional da guerrilha como "força beligerante". Na ocasião, o assessor presidencial Marco Aurélio Garcia, enviado por Lula em missão à selva colombiana, flertou abertamente com a iniciativa de Chávez. Mas tudo ruiu quando uma operação brilhante das forças especiais da Colômbia resgatou Ingrid Betancourt. No mesmo período, sob orientação eletrônica fornecida pelos EUA, os militares colombianos mataram Raúl Reyes, num ataque cirúrgico a seu acampamento no Equador, perto da fronteira da Colômbia.

 

Reyes era o número dois das Farc - e o chefe das relações internacionais da guerrilha. No seu laptop, arquivos autenticados por agências independentes continham elementos cruciais de uma história que um dia será contada por inteiro. As Farc recebiam ajuda militar de figuras do alto escalão equatoriano e, especialmente, do próprio regime venezuelano. A antiga guerrilha colombiana, desmoralizada politicamente e quase derrotada militarmente, convertera-se no instrumento de uma guerra internacional patrocinada por Caracas.

 

Chávez não parou, apesar da dura derrota na crise dos reféns. A descoberta recente de que as Farc utilizam lançadores de foguete de produção sueca, adquiridos pelo Exército venezuelano, foi classificada pelo ministro Celso Amorim como irrelevante. A Colômbia não está de acordo, pois sabe que o pesado equipamento não poderia ter sido roubado em território da Venezuela. Os sinais de alarme soaram também nos EUA, desde a descoberta dos arquivos de Reyes, e um alerta vermelho acendeu em Washington no ano passado, quando Caracas realizou manobras navais com a Rússia no Caribe e firmou um "acordo estratégico" de dez anos com o Irã.

 

Heinz Dieterich, sociólogo alemão baseado no México, tomou o lugar de Ceresole como assessor ideológico de Chávez em 2000. O profeta do "socialismo do século 21" delineou a meta de construção de um "bloco de poder latino-americano" sob a liderança da Venezuela. O bloco antiamericano existirá, de fato, se tiver amparo de potências extracontinentais capazes de contrabalançar a hegemonia hemisférica dos EUA.

Thomas Jefferson discordava da constituição de um exército permanente para a nova república da América do Norte, defendida por Alexander Hamilton. Mas os dois "pais fundadores" convergiam no conceito que moldou a visão de mundo dos EUA: a segurança nacional depende da separação estratégica entre as Américas e o Velho Mundo. A Doutrina Monroe, de 1823, conferiu uma auréola oficial à ideia, que constitui o motivo de fundo do acordo de cessão das bases na Colômbia.

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As Forças Armadas colombianas modernizaram-se na última década e estão entre as mais capazes da América do Sul. Contudo, seu foco são as ações de contrainsurgência e o núcleo de combate é uma força de reação rápida profissional, treinada para confrontos com as Farc. Do outro lado da fronteira, a Venezuela de Chávez engajou-se numa ampla modernização militar baseada na aquisição maciça de equipamentos ofensivos e defensivos. O programa de cooperação com a Rússia envolve a compra de caças, aviões de transporte, navios, helicópteros, sistemas de mísseis e blindados de infantaria. Há analistas que já qualificam isso como uma corrida armamentista. Os EUA não precisam das bases na Colômbia para continuar a cooperar com os colombianos na guerra interna contra a guerrilha. Washington as quer como símbolo de uma presença regional dissuasória e como elementos de apoio logístico na hipótese improvável, mas realista, de uma aventura militar venezuelana.

 

Dias antes de Uribe, Brasília recebeu o general James Jones, assessor de segurança nacional de Barack Obama, que veio narrar a lenda oficial. De acordo com ela, as bases na Colômbia simplesmente substituem a base de Manta, no Equador, cuja cessão não foi renovada por Rafael Correa, um aliado de Chávez. Celso Amorim, naturalmente, não caiu no conto - e solicitou que a Colômbia oferecesse explicações à Unasul. Mais uma vez, como se tornou costumeiro, o ministro manipula a tradição da política externa brasileira, recortando com uma tesoura ideológica as partes dela que prefere ignorar.

 

Na condição de maior potência regional e de país continental com fronteiras compartilhadas nas bacias platina e amazônica, o Brasil enxerga com preocupação a presença militar de potências de fora da América do Sul no seu entorno imediato. É uma posição formulada há cem anos, quando Rio Branco fixou os parâmetros da política externa moderna do País. A parceria privilegiada que ele articulou com os EUA tinha como pressuposto implícito a renúncia americana a estabelecer uma presença militar nas faixas externas das fronteiras brasileiras.

 

Amorim não inova ao sugerir que, do ponto de vista brasileiro, as bases cedidas pela Colômbia, em especial a de Apiay, na Amazônia, a 400 quilômetros da fronteira nacional, não são um equivalente da base de Manta, no litoral do Pacífico. A inovação está no seu solene desinteresse em relação às iniciativas estratégicas de Chávez, que incorporam a Rússia ao cenário geopolítico da América do Sul e ameaçam converter o conflito interno colombiano numa guerra de repercussões regionais. Hoje, como na crise dos reféns, confundem-se os interesses estratégicos brasileiros com as inclinações ideológicas dos ultranacionalistas do Itamaraty e da ala castrista do PT, que enxerga em Caracas uma nova Havana.

Há um preço a pagar por tal escolha. Todos pagaremos.

 

*Demétrio Magnoli, sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP, é colunista de O Estado de S. Paulo

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