A história de um combate sem fim

Epopéia dos direitos humanos não é nem marcha triunfal nem causa perdida

PUBLICIDADE

Por Flávia Piovesan
Atualização:

A Declaração Universal de 1948 surge como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Se a 2ª Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar a esperança de sua reconstrução. Em reação à barbárie totalitária, introduz a Declaração a concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos. Ao sustentar a universalidade dos direitos humanos, a Declaração de 1948 clama pela extensão universal desses direitos, sob o fundamento de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade. Rechaça a equação nazista que condicionava a titularidade de direitos à pertença a uma raça específica - a raça pura ariana. Consolida uma ética universal fundada no valor da dignidade humana, como valor intrínseco a toda e qualquer pessoa. Ao afirmar a indivisibilidade dos direitos humanos, a Declaração ineditamente parifica em grau de importância os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais, endossando a inter-relação e a interdependência dessas categorias. Assinala que não há liberdade sem igualdade, nem tampouco igualdade sem liberdade. Conjuga o discurso liberal e social da cidadania. A história de construção dos direitos humanos tem sido inspirada por processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana, como observa Joaquín Herrera Flores. No mesmo sentido, Celso Lafer, lembrando Danièle Lochak, realça que os direitos humanos não traduzem uma história linear, não compõem a história de uma marcha triunfal, nem a história de uma causa perdida de antemão, mas a história de um combate. A Declaração é, assim, fruto das reivindicações morais de seu tempo, ao endossar a ética dos direitos humanos como aquela que vê no outro um ser merecedor de igual consideração e profundo respeito, dotado do direito de desenvolver as potencialidades humanas, de forma livre, autônoma e plena. Ambiciona salvaguardar a dignidade e prevenir o sofrimento humano. Passados 60 anos, destacam-se sete desafios centrais à implementação dos direitos humanos na agenda contemporânea: a) Universalismo versus relativismo cultural - ao discutir a existência de uma ética universal em mundo marcado pela diversidade de culturas, acenando à busca de um universalismo aberto, pluralista e não etnocêntrico, baseado no diálogo intercultural; b) Laicidade estatal versus fundamentalismos religiosos - ao impactar, sobretudo, os direitos humanos das mulheres, no que se refere à sexualidade e à reprodução, clamando um "novo iluminismo", marcado pela separação entre a razão pública e o domínio privado do sagrado; c) Direito ao desenvolvimento versus assimetrias globais - ao demandar uma globalização mais ética e solidária, eis que 85% da renda mundial concentra-se em poder dos 15% mais ricos, enquanto os 85% mais pobres retêm apenas 15% dessa renda, sendo a pobreza a principal causa mortis do mundo, como adverte a própria OMS; d) Proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais versus dilemas da globalização econômica - ao exigir um novo marco regulatório estatal, a reforma das instituições financeiras internacionais - como o FMI e o Banco Mundial - e a maior responsabilidade social das multinacionais, no sentido de responder ao profundo colapso financeiro internacional decorrente do arbítrio do livre mercado; e) - Respeito à diversidade versus intolerâncias - ao pretender assegurar a igualdade com respeito à diferença, celebrando o idioma dos direitos humanos - o respeito à alteridade; f) - Combate ao terror versus preservação de direitos e liberdades públicas - ao acenar às tensões da agenda do pós-11 de Setembro, tendencialmente restritiva dos direitos, na consolidação de um estado de exceção permanente; enfatize-se que a proteção dos direitos humanos sob o primado do Estado de Direito é essencial para a prevenção do terrorismo; e g) Unilateralismo versus multilateralismo - Em uma ordem marcada pela existência de uma única superpotência mundial, que traz hoje a esperança de romper com a doutrina Bush marcada pelo unilateralismo extremo, sob o resgate da ótica multilateralista, em que a força do direito possa prevalecer em detrimento do direito da força. Neste cenário, emerge o desafio de fortalecer o Estado de Direito e a construção da paz nas esferas global, regional e local, mediante uma cultura de direitos humanos, enquanto racionalidade de resistência e única plataforma emancipatória de nosso tempo, inspirada no princípio da esperança e na capacidade criativa e transformadora de realidades. * Flávia Piovesan, doutora em direito constitucional e direitos humanos e professora na PUC/SP, PUC/PR e Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha), é procuradora do Estado de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.