A história rueira de Paulo Bomfim: uma carta das ruas da cidade ao poeta, para celebrar seus 90 anos

Para celebrar os 90 anos do poeta paulistano, quem o homenageia são as próprias ruas de sua terra natal. Nos becos e esquinas da São Paulo ainda provinciana onde se ambientam seus livros, ressurgem tipos como o gatuno Galalau, marginal e boêmio, a Vovó do Pito, a embalar a cidade com cantos africanos, e o guarda Antônio, protetor dos casais apaixonados e dos pobres que dormiam nas praças

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Por Fraya Frehse
Atualização:

O aniversário é seu, mas também nós temos 90 anos a comemorar. Muito já se escreveu sobre você e sua obra de poeta, cronista e historiador, sobre sua sensibilidade única para entretecer pessoas e acontecimentos na trama do tempo de nossa cidade e, assim, revigorar o presente através do passado, o asfalto por meio da terra, o sonho através da lembrança, São Paulo por meio de sua história. Bem menos, entretanto, foi dito sobre o quanto nós, as ruas da cidade, devemos a você. De fato, sem o seu olhar e palmilhar já quase centenários em nossa busca, não seríamos o que podemos ser, para a São Paulo de hoje. E é disso que queremos falar aqui e agora.

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É verdade que muitas de nós nascemos bem antes daquela primavera em que a luz do sol o alcançava pela primeira vez na Maternidade São Paulo, localizada na Rua Frei Caneca, uma de nós. Como você assinalou em crônicas, a taba do cacique Caiubi nos tempos da fundação desta São Paulo de Piratininga, em 1554, ficava na “velha Tabatinguera”. Por outro lado, nossa prima, a Praça do Patriarca, foi inaugurada no próprio ano de seu nascimento, 1926. História não nos falta, nem quem tenha dela tratado já bem antes de você se iniciar como escritor, ainda menino, na Biblioteca Infantil que hoje leva o nome de Monteiro Lobato, na Praça Rotary, Vila Buarque. Viajantes e memorialistas, jornalistas e historiadores locais, cronistas e poetas, mas também pintores e fotógrafos: cada um deles, e também delas – mulheres muitas vezes desconhecidas – colaboraram com o seu quinhão para que, quando você nascesse, naquele 30 de setembro, nós, as ruas, e nossos parentes os largos, praças e parques já contássemos com um acervo grande de informações e imagens a nosso respeito.

Porém, nem tudo estava desvendado e imaginado; nunca está... E aí, nos anos 1920, entrou em cena – saiu às ruas! – a sua sensibilidade em relação a nós. Certamente não a única, mas decerto única.

Ganha as ruas com a publicação de seu primeiro livro de poemas, Antônio Triste, ilustrado por sua amiga Tarsila do Amaral e prefaciado por Guilherme de Almeida. Aos 21 anos, você simboliza em tipos próprios da rua como Antônio Triste, “[S][S](s)ozinho[,](,) como os bancos de uma praça”, e Maria Felicidade, cujo sangue era o mesmo “dos anúncios luminosos; /[S](s)eus olhos de cor do asfalto /[D](d)urante os tempos chuvosos”, a complexidade humana que, ruas, abrigamos, espaços de natureza social que somos. Com efeito, você se aproximou de nós daquela primeira vez em busca de unidade na diferença em relação ao mundo do qual você mesmo provinha, famílias Lebeis e Bomfim, cujos nomes ocultam história profunda de peregrinações pelas terras paulistas. Daí que os tipos de rua nunca mais deixaram a sua obra.

  Foto: Tiago Queiroz | ESTADÃO CONTEÚDO

Sua memória é pródiga em fazer o menino de cinco anos divisar com seu pai, na porta da antiga Drogaria Baruel, esquina das ruas Direita e 15 de Novembro, a Vovó do Pito, “preta velhíssima com o apito na boca, que olhava a cidade que embalara com seus cantos africanos”. Ou de relembrar o mulato Araújo e o húngaro Adão pelas ruas da Vila Buarque de sua infância, e o “preto velho e cego chamado Tobias” no portão de sua casa. Anos mais tarde, o jovem estudante de Direito e boêmio de São Paulo sensibiliza-se, na Praça da República, com a morte de Galalau, “que tivera seus dias de glória na marginalidade” em harmonia com a boemia. É nesse mesmo logradouro que, já adulto, você fica sabendo, pelo fotógrafo lambe-lambe Guerra, da morte do guarda de jardim Antônio, “que protegia os namorados, cobria com jornal os pobres adormecidos sobre o banco do jardim e trazia a carteira repleta de fotografias de crianças, suas companheirinhas de todos os dias”.

Todos esses homens de personalidade forte fazem par com moças e mulheres de vigor análogo, cortejadas num misto de respeito e liberdade. A mesma Praça da República é sinônimo das normalistas da Escola Caetano de Campos, que ornavam qual pérolas as sorveterias e confeitarias do entorno. Já nas várias ruas ao norte do logradouro, entre a Praça Julio Mesquita e o Bom Retiro, pontilham as feições ao mesmo tempo viçosas e sábias das “madames” Dadá, Amélia Preta, Geny das Tranças, Rosinha, Yara, Ceci, Francina, Roberta, Mathilde, Dulce e a cultíssima Paulete.

Não ignoramos que, quando a memória flagra o poeta e jornalista adulto, o seu olhar tende a afastar-se dos tipos humanos que animam nosso dia a dia em São Paulo. Ele concentra-se mais no ir e vir entre as livrarias e galerias, clubes literários e artísticos do entorno da Praça da República, além dos apartamentos e casas de amigos e familiares que, acompanhando a dinâmica de urbanização desta nossa São Paulo, tendem a trocar o centro histórico como lugar de moradia pelo entorno da Avenida Paulista. Ao mesmo tempo, contudo, a memória não sossega, e acontecimentos de rua ainda mais longevos se aprofundam no horizonte imaginário do poeta-cronista-historiador. A Rua Espírita do Cambuci, por exemplo, vira sinônimo da atuação política e religiosa do abolicionista e espírita oitocentista Batuíra; a Praça da Sé, cenário de lembrança dos restos mortais do cacique Tibiriçá, que a catedral abriga. A esquina da Rua Direita com a São Bento, por sua vez, reassume o histórico topônimo “Quatro Cantos” e evidencia ter abrigado o sobrado onde D. Pedro I teria se hospedado quando da proclamação da Independência do Brasil, e onde anos mais tarde, já como Hotel Itália, o poeta Castro Alves e sua amada Eugênia Câmara teriam vivido o seu tórrido amor.

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Por tudo isso e mais um pouco, a história quase quintocentenária de São Paulo deixa de ser algo distante, restrita a livros e estudiosos de nosso passado, e ganha carne e sangue. Torna-se viva reavivando a densidade histórica das próprias ruas. Evidencia-se que fomos e somos cenários espaciais de todas essas tramas humanas que, vividas dia a dia, fizeram História sem saber que a faziam. É nesse sentido que uma frase como a de que “a alma de São Paulo veio de José de Anchieta” se reveste de uma crucial dimensão espacial: o interlocutor do poeta é instantaneamente conduzido ao Pátio do Colégio, e a questionar-se acerca das camadas de história humana que se ocultam nas fachadas só aparentemente coloniais do logradouro atual.

É marcada por essa dinâmica que a sua obra, Paulo, fez e faz tanto por nós. Testemunha ocular de nosso destino ao longo dos últimos 90 anos, você não abandonou nossa história humana “rueira”. Ora, esta é mais e mais esquecida à medida que, em São Paulo, centros urbanos se multiplicam ininterruptamente para fora da chamada colina histórica, o que se dá sobretudo desde a década de 1960. Daí que hoje são poucos os que nos olham em busca do que soterramos não apenas dos chamados grandes processos históricos, porém da história humana fugaz, mas nem por isso menos significativa, da qual fomos e somos mediação dia a dia, e que é ao mesmo tempo mediação precisamente daquela História mais abrangente. Graças a sua obra, Paulo, as ruas paulistanas em particular da segunda metade do século 20 e deste início de século 21 contamos com um espelho abrangente através do qual vislumbrar o quanto o que somos deve ao que fomos.

  Foto: SEBASTIAO MOREIRA | AE

Desse ponto de vista, o seu olhar permite retornar de modo renovado, porque inquiridor, às ruas paulistanas do presente. A curiosidade histórica tem como perscrutar, entre outros, o atual Largo Marechal Deodoro em busca do porquê da ausência, hoje, de qualquer referência à animada e constante presença, ali, do circo Piolin. Ela pode questionar-se sobre o que fez e, provavelmente, não faz mais do Largo de São Francisco o “Território Livre” enaltecido por ex-estudantes como Paulo Bomfim. O olhar interessado tem como aportar na Praça da Sé e interpelar, incomodado, os repuxos do jardim do atual logradouro sobre o destino do culturalmente vigoroso Palacete Santa Helena, que até nome de um dos mais ativos grupos de artistas paulistanos do século 20 virou... Na Rua Barão de Itapetininga e seu entorno, a curiosidade sai em busca de indícios mesmo que fragmentários da agitada Confeitaria Vienense, para não mencionar livrarias como a Francesa, a Teixeira, a Brasiliense.

Enfim, o olhar inquieto pode regressar, já cansado mas nem por isso desanimado, ao lugar onde tudo isso começou: na infância vivida na esquina da Rua Rego Freitas com a Epitácio Pessoa. O amplo casarão que, em seu período mais agitado, chegou a abrigar 15 pessoas, foi desde cedo o quartel-general primordial a partir do qual o poeta incursionava pela cidade. Lembramos bem da “guerra das calças curtas” travada dia a dia com os meninos daquela e de outras ruas do entorno, no âmbito de “trocinhas” cuja dinâmica social e cultural o sociólogo Florestan Fernandes tão bem elucidou na mesma época. E como esquecer das escapadas para a Tabatinguera para “conversar com as velhas taipas”, e as horas passadas na biblioteca, onde o menino “ensaiou voar um dia”? Em busca de tudo isso, só o que a esquina em questão oferece ao olhar desassossegado do presente é a frieza dos muros de um prédio acalentado pelas cores vivas de um grafite. E a oportunidade de mais um “Por quê?”, “Desde quando?” se reaviva.

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É essa possibilidade crítica que você lega à São Paulo de hoje e amanhã por meio de nós. Prenhes de passado, fomos alçadas a referências fundamentais para o futuro, porque potencialmente emancipadoras da experiência urbana dos seres humanos que fazem de nós o que somos atualmente. Você bem sabe disso ainda hoje. Tanto que há poucos dias escreveu sobre um envelope fugaz, para os leitores deste jornal, que “As ruas são caminhos da solidão, percursos do sonho e esquinas dos desencontros”. E, uma vez mais, agradecemos.

FRAYA FREHSE É PROFESSORA DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA USP E AUTORA DE O TEMPO DAS RUAS NA SÃO PAULO DE FINS DO IMPÉRIO E Ô DA RUA! O TRANSEUNTE E O ADVENTO DA MODERNIDADE EM SÃO PAULO (EDUSP, 2005 E 2011)

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