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A hora do Brasilzão

Campanhas revelam pouco sobre as intenções dos políticos. Mas demonstram como o eleitor brasileiro é um ?bárbaro?

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Atualização:

Se você encontrar o Gilson pelos corredores da Escola de Comunicação e Artes da USP, a ECA, vai pensar que ele é o estudante e não o professor. Com seus cabelos longos, rabo de cavalo e camiseta despojada, a última coisa a se pensar sobre ele é que ali vai um respeitável economista. Seu avatar - ele adora o termo ressuscitado pelos internautas - está muito mais para um aluno jubilado, daqueles que vão ficando, do que para um mestre cujos interesses não se restringem a uma só ciência. Gilson Schwartz, paulistano de 47 anos, é graduado em Economia e Ciências Sociais pela USP, possui mestrado e doutorado em Ciência Econômica pela Unicamp, pós-doutorado no Instituto de Estudos Avançados da USP. Desde 2005, é professor do Departamento de Cinema, Rádio e TV da ECA, onde leciona a disciplina de pós-graduação Economia da Informação e Novas Mídias. Entre 1986 e 2006, trabalhou como articulista e editorialista do jornal Folha de S.Paulo. A experiência em redação (não o exercício da escrita, que já lhe era familiar muito antes, mas a presença no espaço físico do jornal) lhe valeu o convite para participar da criação das revistas Época e Época Negócios. Nesta última manteve coluna intitulada Iconomia - um conceito seu que diz respeito à "economia do audiovisual e dos ativos intangíveis", sobre o qual vai falar, em setembro, na London School of Economics and Political Science. Desde 1994, Gilson Schwartz vem atuando também como consultor de instituições financeiras. Foi economista-chefe do BankBoston e assessor da presidência no BNDES. Suas maiores preocupações, no entanto, há muito migraram para questões como a "emancipação digital" - em 1999, depois de ser selecionado em concurso público no Instituto de Estudos Avançados da USP, implantou a Cidade do Conhecimento, um premiado projeto de pesquisa nessa área. Antes, tinha sido pioneiro na implantação de um Telecentro, no interior do Rio Grande do Norte. A partir de 2007, Gilson passou a responder, também, pelo trabalho de curadoria do Centro Cultural Bradesco - não no mundo real, mas no Second Life, o mais famoso dos ambientes virtuais da internet. Diante dos impedimentos impostos ao uso da internet na campanha eleitoral deste ano - e dos invariáveis programas eleitorais gratuitos a que somos submetidos -, o Aliás convocou Gilson Schwartz para analisar o discurso político que emana das telas da TV. Na Cidade do Conhecimento - uma pequena salinha no andar térreo da ECA - ele concedeu a seguinte entrevista. Por que os políticos parecem tão falsos e seus discursos, um engodo? Há uma expressão repetida exaustivamente, que no entanto permanece relevante: a sociedade do espetáculo. Nesse tipo de sociedade na qual vivemos a tecnologia do audiovisual é avassaladora - tanto por razões virtuosas como não. A inteligência audiovisual é mais rica do que a retórica tradicional ou apenas textual. E assim ela enriquece nossa imersão no mundo. Mas há um outro lado, que não está restrito ao espetáculo digital contemporâneo: não existe representação sem máscaras, seja na comédia ou na tragédia. Preferimos a comédia, mas já os gregos apontavam que as tragédias, pessoais e coletivas, estão aí. O que quero dizer é que a questão da representação, onde obviamente o político se insere, estará sempre associada a um certo teatro - a uma certa falsificação, manipulação ou mediação -, que se tornou cada vez mais profissional nas democracias do Ocidente. No caso da política, a mediação feita por um ícone é sempre necessária. O grau de autenticidade, confiança ou admiração com relação a esse ícone é um problema de oferta e demanda: depende, de um lado, de que boneco - ou avatar - é esse que se apresenta; de outro, da capacidade que temos de dialogar com ele. A grande pergunta é: o político que aparece no vídeo é o responsável ele mesmo por sua falsificação ou ele é, antes, a falsificação de um processo que não quer aparecer? Esta pergunta tem lugar, por exemplo, quando se sabe que os políticos raramente explicitam os financiadores de suas campanhas. Esse teatro político parece eficiente ao senhor, na medida em que a mensagem por nós captada tem caído cada vez mais em descrédito? Há uma opinião pública mais esclarecida, que evidentemente é uma minoria. Por outro lado, muitos setores da classe média fazem parte da produção de todo esse espetáculo da política e por isso conseguem enxergar suas máscaras. Podem não estar diretamente envolvidos na campanha desse ou daquele candidato - mas estão, por exemplo, "infiltrados" nos tribunais eleitorais. Há uma cadeia produtiva dessa imagem do político que acaba por alcançar todos os que estão interessados em que a encenação continue da mesma forma - ainda que, do ponto de vista da opinião mais esclarecida, vá ficando claro os limites de eficácia em termos de persuasão. Mas, se essa cadeia sobrevive, é porque os limites estão longe de ser alcançados. As campanhas políticas não têm, então, nenhum compromisso com quem pensa? Estive na Globo com um grupo de professores da USP que foram discutir com o (editor-chefe) William Bonner como era feito o Jornal Nacional. A certa altura, questionamos se as notícias não eram veiculadas de uma forma simplista demais. Foi quando Bonner comentou que era preciso levar em conta que as notícias estavam sendo comunicadas a um tipo como Hommer Simpson. O personagem de fato é um ícone do indivíduo menos consciente. Na época, estabeleceu-se um debate, e publiquei uma carta citando uma obra que faz a análise filosófica dos Simpsons, chamada Simpsons e a Filosofia. Hommer é o primeiro capítulo - e lá está dito que ele não é uma pessoa sem virtudes. É apenas um homem aristotélico, ou seja, sua virtude está no meio termo e muitas vezes na mediocridade. A mediocridade, claro, é um risco, da mesma forma que o juízo mal informado. No caso da política, a construção da informação sobre um candidato está em boa medida direcionada ao Hommer e não àquele sujeito mais consciente que talvez desejasse saber, em primeiro lugar, quem financiou sua campanha. Uma hora isso vai sair no jornal, mas apenas uma elite estará disposta a ler. Tem um site em que se poderá verificar as declarações do Imposto de Renda dos candidatos. Mas as pessoas têm mais o que fazer - têm o blog para ler, o Orkut. É importante que tenhamos uma elite crítica. Mas, de qualquer maneira, o sujeito que vai construir a imagem do candidato, nesta sociedade tão predominantemente audiovisual, vai tomar decisões muito parecidas com as do Bonner - que não são necessariamente ruins, embora, em muitos momentos, por perseguir a opinião média, tudo pareça tão ralo e repetitivo de clichês que chega perto de perder o sentido. Como analisa as restrições ao uso da internet pelos candidatos nesta campanha eleitoral? No mundo todo, e em especial no Brasil, houve, nos últimos cinco anos, um empoderamento de setores sociais que de fato estavam na periferia não apenas urbana, mas também da indústria cultural. A ubiqüidade que vem junto com a mobilidade dos sistemas de gestão de informação tem dois lados: aumenta o lixo que circula, mas também as possibilidades de expressão. Proibir o uso da internet por causa do risco que está embutido na sua manipulação é o mesmo que proibir a venda de carros por causa dos acidentes. Isso diminuiria muito a mobilidade das pessoas, mas paciência - a partir de hoje, quem dirigir está preso. Seria um absurdo e por isso estabeleceram-se regras para o sistema de transportes. No caso da informação, ela é intangível - não é como o carro, que vai ocupar espaço na rua; mas ela permite que o indivíduo ocupe espaço na mídia e na sociedade. Esse indivíduo tem agora onde publicar seu poema, seu hip hop, seu vídeo. Mas e a sua proposta política? E a sua candidatura? Onde ele vai pôr? Por que estamos reprimindo isso? A quem interessa esse impedimento? Certamente a quem já manipula e controla os meios onde isso é permitido. O olhar do TSE sobre a internet destrói potencial e reduz a capacidade das pessoas de exercer o direito à cidadania, que inclui direito à comunicação responsável. De repente, nesse campo a China ficou hoje mais liberal que o Brasil. O senhor consegue imaginar um jovem usuário da internet sentado diante da televisão no horário eleitoral gratuito? Não. A repressão ao uso da internet na campanha atinge diretamente a geração dos nativos digitais. O alento é que a juventude sempre vai buscar novos caminhos de manifestação - e isso pode eventualmente surgir, ao longo do tempo, como a ineficácia dos modelos de campanha e comunicação política existentes. Mas, por enquanto, apenas a televisão está presente em 99% dos municípios, como um oligopólio. Quando os políticos e os tribunais eleitorais reprimem o exercício da política nos novos meios, apenas reforçam esse oligopólio das televisões e também das rádios. Por isso, além da internet, as rádios comunitárias sofrem tanta restrição. Rádio é um instrumento de custo muito baixo. Quando sua tecnologia apareceu, acreditou-se que, por ser bidirecional, o rádio era a democracia. A repressão aos novos meios, esse conflito setorial entre a telecomunicação e a radiodifusão - isso tudo suscita grandes questões: quem é dono da televisão no celular? Quem usa o celular para fazer programa de televisão? Como se divide o bolo dessas receitas? Essas perguntas são parentes de outras: Quem pode aparecer? Quem pode produzir a própria mídia política? Causa estranheza que o País e o mundo tenham mudado tanto nas últimas décadas e a maneira como se "vende" o político brasileiro tenha permanecido basicamente a mesma - o mesmo blablablá, o sujeito beijando criancinha e comendo buchada de bode? No Brasil ocorreram grandes transformações, sempre ligadas à globalização. No século 16, os engenhos de cana de açúcar tinham uma tecnologia totalmente revolucionária. Depois vieram os ciclos do ouro, da borracha, do café, da industrialização. Nos 500 anos em que o Brasil muda com o mundo, certas coisas, porém, não mudam ou mudam muito devagar. Em geral, elas dizem respeito a quem controla a divisão do poder e da riqueza - e, claro, a divisão do espaço onde se é visto e ouvido. Por isso o País é hoje notoriamente desigual e tem um baixíssimo nível de desenvolvimento da informação, da comunicação e da própria cultura. Repetidamente, ocupamos sempre as piores colocações nos rankings relativos à educação. Ao mesmo tempo, não faz parte da nossa pauta exportadora os produtos e serviços intensivos em tecnologia e inovação. Se olharmos para trás, o Brasil é um país que sempre se reinsere nos ciclos mundiais. Mas apenas uma elite se apropria das novas oportunidades. Uma grande maioria fica para trás, sem possibilidade sequer de se auto-educar. Dentro disso, a internet é uma mudança radical. De fato, ela tem um potencial de democratização, no sentido de combinar negócios, tecnologia e cidadania. Mas por enquanto é apenas um potencial e, mesmo em muitas outras partes do mundo, o que se tem constatado é a tentativa de asfixia desse novo meio. No Brasil ocorre um reacionarismo não apenas instrumental, mas também estético e cultural. Quem tem medo da liberdade e da inovação tem medo também de mudar sua própria forma de aparecer. Por isso o político, grande responsável pela manutenção do status quo, vai se falsificando tanto em sua aparência. Por ser reacionário no conteúdo, acaba sendo reacionário também na forma. Assim, apesar de tantas mudanças, nós o vemos do mesmo jeito na televisão. O Legislativo e o Judiciário são os mantenedores desse espetáculo em que os ingressos e o programa estão sob controle restrito. Se a juventude é afeita à inovação, como o jovem ingressará na política, sendo esse um campo tão refretário às novidades? Ou esse jovem será herdeiro de algum patrimônio político ou será um sujeito habilitado à manipulação dos ícones. Ele tomará a seguinte decisão: eu não vou cuidar de ações na bolsa, mas vou, por exemplo, trabalhar com a área de vídeo nas campanhas eleitorais - ou farei roteiro de filmes publicitários para candidatos, o que dá uma grana violenta. A produção do espetáculo político atrai muitos jovens, mas somente porque ali tem dinheiro. Claro que sempre haverá o movimento de resistência, de contracultura. No entanto, é sempre preocupante observar as reações a isso. Para evitar o desconhecido, proíbe-se tudo. Em São Paulo, talvez se esperasse da Soninha, a candidata mais jovem à Prefeitura, uma campanha diferente. Não tem jeito: o Hommer está lá esperando por ela. Qual a sua opinião sobre os marqueteiros políticos? É preciso fazer a distinção entre o agente e o intermediário. Na sociedade em que vivemos, a intermediação faz parte do jogo e a mídia, da realidade. Há algum tempo atrás, não se considerava assim: a realidade era apenas aquilo que era real. O que o novo capitalismo está trazendo é justamente essa faceta híbrida, em que não dá para separar o material do imaterial - e portanto não existe coisa sem a representação dessa coisa, o que sugere a obrigatoriedade da mediação. Não há mal nenhum na atuação de quem faz o inevitável trabalho de mediar. Agora, há o agente que se empenha em criar, preservar ou explorar uma assimetria de informação. Se, no trabalho de mediação, um profissional contribui para aumentar o desnível entre quem está informado e quem não está, ele se coloca a serviço da opacidade e não da comunicação. Este é, em última análise, um preservador da ignorância, alguém que parasita sobre a tecnologia da mediação. Há marqueteiros que fazem programa de governo. Isso extrapola totalmente a mediação, para abrigar-se na manipulação das expectativas. Mas é importante perceber que o marqueteiro não age dessa forma por um viés de personalidade ou por uma maldade intrínseca. Ele atende a uma demanda: o candidato não sabe se pentear, precisa de um cabeleireiro; se tem de falar na televisão, precisa de alguém que filme; agora, e se ele não tem nada a dizer? Então tudo isso desaba. Aí, no lugar da mediação, surge esse marqueteiro que redigirá para ele um programa de governo. Esse profissional não passa de um corretor da ignorância. Apesar disso, não temos de pôr a culpa nele. O fato é que o nosso Hommer é bem pior que o Hommer do desenho animado. Aquele é realmente aristotélico. O nosso é muito bárbaro - falta a ele civilidade e cidadania. E o acesso a isso é repetidamente negado.

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