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A influência da primeira leitura da infância de Graciliano Ramos

'O Menino da Mata e seu Cão Piloto' ajudou a formar muitos dos escritores brasileiros

Por Ieda Lebensztayn
Atualização:
Retrato de Graciliano Ramospor Candido Portinari, desenho a carvão e crayon sobre papelexecutado por encomenda de Murilo Miranda para a Revista Acadêmica, em 1937 Foto: Acervo Projeto Portinari

O menino estava apartado dos livros. Eis que, quase analfabeto aos nove anos, viveu a surpresa de ser convidado pelo pai a ler um folheto: O Menino da Mata e seu Cão Piloto. Naquela “noite extraordinária”, o pai foi lhe traduzindo em “linguagem de cozinha” as expressões literárias. Animada, a criança reconhecia que havia alguma coisa no livro, embora difícil de entender totalmente: “E uma luzinha quase imperceptível surgia longe, apagava-se, ressurgia, vacilante, nas trevas do meu espírito.” 

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Contudo, o pai interrompeu o novo hábito, provocando uma sensação de ruína no filho, que sofria com o estigma de incapaz: quando havia descoberto “uma coisa muito preciosa”, de repente “a maravilha” se quebrava, pareciam-lhe vedados os momentos de encanto.

Ora, existe a prima Emília: o menino recorreu a ela, que lhe sugeriu arriscar-se a ler sozinho. Se os astrônomos leem o céu, disse ela, o primo, que conhecia as letras, seria capaz de reuni-las em palavras e “adivinhar” a página diante de seus olhos. 

Então, o menino se embrenhou no quintal com as personagens daquele folheto – os lobos, o homem, a mulher, os pequenos.

Dobrando-se ao texto, libertou-se do estigma de “bruto em demasia”: “Reli as folhas já percorridas. E as partes que se esclareciam derramavam escassa luz sobre os pontos obscuros.” Com base no que conhecemos é possível compreender o desconhecido, o outro, uma “luzinha” aponta, mesmo se mantendo os limites. Assim, o menino se fez outro, à semelhança dos astrônomos, mas seria o astrônomo do inferno: sua identificação não era com os segredos do céu, e sim com os homens perseguidos como os daquele livro.

Necessária, essa lição poética de compreensão das palavras, dos textos e das pessoas se lê em Os Astrônomos. Capítulo-conto de Infância (1945; 48.ª edição, Record, 2015), de Graciliano Ramos, constitui das mais belas páginas em língua portuguesa, escritas em 1938. 

O Menino da Mata e seu Cão Piloto, outro capítulo de Infância, trata justamente desse primeiro folheto que o menino Graciliano leu, ou, pior, não leu. Se a leitura acena com a libertação, logo veio uma proibição infernal: dizendo que o autor do folheto era protestante, a prima Emília despertou no menino o temor de ler aquele livro “excomungado”. Identificado com a história da criança abandonada na floresta, a qual e com a qual tinha começado a ler, o menino chorou muito ao se ver obrigado a abandonar o livro. “Encontrei depois muitas intolerâncias, mas essa foi para mim extremamente dolorosa.”

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Mas que história é esta, O Menino da Mata e seu Cão Piloto? Conto do folclore ibérico inspirado na vida de José, filho de Jacó, do Gênesis, narra a trajetória de um caçula órfão que, abandonado pelos irmãos na floresta, se reconforta ao encontrar seu cão e depois uma senhora numa casa. Descobre ser ela sua avó, constrói sua vida e é capaz de perdão quando, tempos mais tarde, os irmãos lhe batem à porta, necessitados de ajuda. 

Há uma edição de Portugal dessa obra, de 1838. E saiu entre as Histórias da Carochinha em 1894, pela Livraria Quaresma, do Rio de Janeiro. Significativamente, outros escritores também fazem referência, em suas narrativas, a esse livro, marcante na infância deles: o pernambucano Medeiros e Albuquerque (Quando Eu Era Vivo: Memórias 1867 a 1934) e os mineiros Cyro dos Anjos (A Menina do Sobrado), Rodrigo M. F. de Andrade (Velórios) e Vivaldi Moreira (O Menino da Mata e seu Cão Piloto: Memórias Sincopadas).

Merece destaque um depoimento do escritor Medeiros e Albuquerque, autor de Mãe Tapuia, Marta, Poemas sem Versos, entre outros, e contemporâneo de Machado de Assis. Em seu referido livro de memórias, conta ele que sabia ler tão bem aos quatro anos, que o elogiavam dizendo-o leitor do Jornal do Commercio, cujas letras eram miúdas. Mérito de sua mãe: por meio de cubos e cartões com letras e sílabas, ela lhe ensinou, brincando, a leitura, o que para muitos envolve tormento. 

Além de atribuir, risonhamente, a tal “envenenamento precoce” pelas letras sua carreira de jornalista, Medeiros e Albuquerque reporta uma “ideia genial” sua, “patetinha infantil” cuja primeira novela lida foi justamente O Menino da Mata e o seu Cão Piloto.

Gostou tanto do livro, que escondeu “o volumezinho”, dizendo que o perdera, para que o pai comprasse outro exemplar. “E quando ele fez isso, exibi, triunfante, a prova da minha tolice…” 

Memoráveis, as histórias de Graciliano Ramos e de Medeiros e Albuquerque a respeito das primeiras leituras traduzem o gosto pelos livros e sua importância como objeto particular e atemporal, de formação das dimensões afetiva, cognitiva, cultural, estética e ética.

Em enquete de 1938, Graciliano conta que o brinquedo permitido a ele, menino tido por inepto, foi “ler romance”. Vêm as perguntas:

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Quais livros nossos escritores leram na infância? Num mundo de eletrônicos, pressa e ruídos, como cultivar o tempo de brincar com as palavras e ler romances? As crianças têm acesso a livros? É possível, leitor, pensar no choro de uma criança apartada do livro?

*Ieda Lebensztayn é crítica literária, pesquisadora de literatura brasileira da Biblioteca Brasiliana Mindlin/FFLCH-USP

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