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A levitação de Lula

Presidente festeja a popularidade nas alturas (77,7%), mas crise global ameaça o brilho dos fogos

Por Ivan Marsiglia
Atualização:

Em 1996, dois anos depois da acachapante eleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, alçado pela popularidade do Plano Real, o historiador Luiz Felipe de Alencastro concedeu uma entrevista à Teoria&Debate, revista da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT. Em plena maré alta tucana, quando o príncipe dos sociólogos anunciava o fim da era Vargas, enxergou a vazante que viria seis anos depois. "O que me parece grave no cálculo do FHC é que aparentemente não leva em conta o fato de que um país é forte quando tem uma coesão social forte", disse ao jovem repórter Fernando Haddad, hoje ministro da Educação no segundo mandato consecutivo de Luiz Inácio Lula da Silva. Esta semana, pesquisa divulgada pela CNT/Sensus revelou uma extraordinária coesão em torno do nome do presidente Lula. Sua aprovação pessoal atingiu 77,7% e, pela primeira vez, ele obteve índices positivos em todas as faixas socioeconômicas e graus de instrução. Para Alencastro, a explicação está na convergência da melhoria das condições sociais e econômicas do país e da alta exposição do presidente na corrida pelas eleições municipais. Claro, considerando o terremoto financeiro global, e eventuais impactos na economia brasileira, tudo pode mudar. "Também não nos esqueçamos que Lula está em campanha eleitoral há 20 anos", acrescenta esse catarinense de Itajaí, que acompanha o processo político nacional de um posto privilegiado, a cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris-Sorbonne. Aos 62 anos, Alencastro conseguiu a proeza de um olhar ao mesmo tempo íntimo e distanciado da realidade brasileira, conquistando o respeito de intelectuais à direita e à esquerda no espectro político-ideológico. Ex-integrante do Cebrap, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, e professor da Unicamp, Alencastro é autor de A Economia Política dos Descobrimentos Portugueses (1998), Um Estadista do Império (1999) e O Trato dos Viventes (2000). Nesta entrevista, afirma que Lula melhorou a imagem do Brasil no exterior e controla não só as ambições políticas de seus ministros como as de seu partido, o PT. E aposta: "Ele é candidato em 2014". Como explicar tanta popularidade? Há aí a convergência de dois fenômenos. Primeiro, a melhoria das condições sociais e econômicas do País: queda do desemprego, crescimento do PIB e a informação dada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) há alguns dias: 13,8 milhões de brasileiros subiram de faixa social entre 2001 e 2007. Segundo, há o efeito das campanhas municipais: em cerca de 6 mil municípios, dezenas de milhares de candidatos a vereador e a prefeito se declararam lulistas desde criancinhas. E a aprovação em todas as faixas socioeconômicas e diferentes graus de instrução? Lula não assusta mais as elites? Voltemos à ultima eleição presidencial. Ao contrário do que tem sido dito, o voto em Lula no segundo turno de 2006 foi bastante espalhado regional e socialmente. Lula venceu na maioria dos Estados do Norte e do Nordeste, mas ganhou também em Brasília, Goiás, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Nesses cinco Estados ele abriu uma vantagem de 7.291.000 de votos sobre Geraldo Alckmin (PSDB) no segundo turno. Mesmo que todos os brasileiros do Norte e do Nordeste tivessem ficado em casa, Lula venceria com folga. O crescimento econômico provocou um espraiamento de sua popularidade noutras camadas sociais. É interessante notar também o efeito multiplicador de alguns programas do governo. É claro que o Bolsa-Família é importante, mas acho que o ProUni também teve repercussão: há duas gerações de famílias que pela primeira vez têm um membro fazendo curso universitário. A popularidade está ancorada no carisma pessoal do presidente ou na aprovação do governo, que na pesquisa bateu em 68,8%? O prestígio do governo decorre do prestígio de Lula. Veja que o segundo mandato conta com ministros mais discretos, que aprenderam a ficar à sombra do presidente. No primeiro mandato havia três superministros que acabaram se estrepando: José Dirceu, Antônio Palocci e Luiz Gushiken. E Lula está em campanha nacional há 20 anos! Foi candidato à Presidência cinco vezes e uma vez candidato ao governo de São Paulo (em 1982). Noutras vezes viajou pelo Brasil inteiro em pré-campanha, como na "Caravana da Cidadania" de 1996. O eleitorado dele tem uma curva crescente no primeiro turno: em 1989 ele teve 17% dos votos; em 1994, 27%; em 1998, 32%; em 2002, 46%; e em 2006, 48% . Não há paralelo de uma atividade eleitoral tão constante como a dele nas democracias atuais. Patrus Ananias pilota o Bolsa-Família, principal programa social do governo, e mal aparece. Guido Mantega, na Fazenda, já foi até repreendido publicamente por Lula... E certamente será de novo, porque é um incorrigível falastrão. E o PT, também virou coadjuvante? Sim. Sumiu o PT. Tanto que a ministra mais forte, a Dilma, não vem do PT, era ligada ao PDT gaúcho, chegou depois. Hoje, Lula controla as ambições do governo. Antes, um ministro ou algum líder partidário podia se fortalecer e "curto-circuitar" um veto do presidente ou uma oposição dele a uma eventual candidatura. Foi o que ocorreu com a Marta Suplicy, que no início do segundo mandato tentou tomar o Ministério da Educação do Fernando Haddad mobilizando o PT de São Paulo. Ali foi um momento crítico, e ela não conseguiu. Haddad é um intelectual, sua filiação ao PT é simbólica, não é um sujeito de aparelho. E ficou demonstrado que Lula tomou a coisa em mãos: qualquer possibilidade de influência do partido tinha acabado. O senhor vê o traço populista no modo de atuar do presidente Lula? A fronteira conceitual entre uma política classificada de "popular" e outra dita "populista" é tênue. Os partidários do governo sempre acharão que Lula faz uma política popular; seus adversários, que ela é populista. Parafraseando (o escritor polonês Witold) Gombrowicz, que escreveu "a pornografia é o erotismo dos outros", pode-se dizer que o populismo é a popularidade dos outros. De todo modo, o carisma de Lula decorre também da ruindade da oposição. No mensalão, a estratégia da oposição de bombardear o governo com CPIs de todo tipo mostrou-se contraproducente. Quantas vezes líderes do PSDB e do PFL-DEM disseram que o governo Lula estava acabado? E as propostas? O último projeto político do PSDB foi o parlamentarismo, fragorosamente derrotado nas urnas em 1993. A política de defesa da indústria nacional e do mercado interno, que era o quintal de Serra e o diferenciava de Lula e até de FHC, foi incorporada por Lula. O PSDB está hoje reduzido a pegar carona no prestígio de Lula, reivindicando a paternidade remota do Bolsa-Família e de outros trunfos do governo atual. A ruindade dos governantes vizinhos também favorece o carisma internacional de Lula. Dos três países mais importantes da América Latina, só o Brasil tem tido uma longa estabilidade - iniciada, é certo, com FHC. A Argentina está sempre à beira de uma crise e o México não conheceu ainda uma verdadeira alternância democrática. Lula é percebido por parte da população como "pai dos pobres", a exemplo de Getúlio Vargas? Getúlio reúne o prestígio obtido com a introdução da legislação trabalhista e o trauma causado por seu suicídio, ato que é quase um tabu numa sociedade impregnada de religiosidade como a brasileira. Aquilo foi tomado como martírio político. No final das contas, ele foi apenas um "pai dos pobres assalariados urbanos", o que no Brasil da época era pouca coisa. Sobre Lula, é cedo para dizer se será lembrado assim. Sua carreira política continua, a história ainda não está escrita. Como o senhor o compararia com outros líderes latino-americanos, como o venezuelano Hugo Chávez e o colombiano Álvaro Uribe? A situação é muito diferente. Chávez é um ex-militar golpista que governa cavalgando uma máquina estatal engordada pela alta do preço de petróleo, com um Parlamento esmagadoramente dominado por seu partido e uma imprensa acuada. Uribe dirige um país atravessado por uma sangrenta guerra civil e seu prestígio depende do vaivém desse conflito. E Alan García, que para muitos analistas tem feito um bom governo no Peru: por que ostenta índices de aprovação sofríveis? García teve um primeiro mandato presidencial catastrófico (1985-1990), que jogou o Peru numa grave crise. Ele ainda tem muito a fazer para ganhar prestígio no seu país. Como o senhor compararia o carisma de Lula com o de Vargas, JK e FHC, por exemplo? Lula preside um país urbanizado, mais educado, mais integrado à mídia visual - nada a ver com o país majoritariamente rural presidido por Vargas e JK. A diferença com FHC também é patente: de 2000 a 2008, o eleitorado nacional aumentou em um quarto. Ao contrário de FHC, que sempre cultivou aquele ar professoral, Lula fala todas as línguas e linguagens sociais - sabe se dirigir a todos os setores do eleitorado nacional. Mas, mesmo com ar professoral, FHC o derrotou duas vezes. A primeira eleição de Fernando Henrique foi larga e legitimamente fundada no Plano Real. Ele fez um bom governo e Lula perdeu outra vez. Mas o ponto é que no fim do governo FHC a maioria do eleitorado - há uma pesquisa sobre isso - não votaria em um candidato indicado por ele. José Serra sabia disso, e muito de seu silêncio sobre o antecessor na campanha se deveu ao fato. Então, embora FHC tenha ganho duas eleições de Lula, saiu ao final do mandato com o prestígio lá embaixo e não conseguiu fazer seu sucessor. Um político pode acabar refém de sua popularidade? Essa é a maldição do poder, que vi acometer até amigos meus ex-ministros e ex-presidentes. Pega de todo lado, não tem como. Mas como Lula tem uma longa acumulação de derrotas, deveria estar mais vacinado contra isso que os outros. Eu espero que a maldição não o atinja. Questionado sobre o caos em Wall Street Lula devolveu aos jornalistas: "Pergunte ao Bush". A propósito da liquidação do Lehman Brothers e do Merryl Lynch, afirmou que "os palpiteiros estão quebrando". Na ONU, cobrou de Bush explicações sobre a crise. Já não é confiança demais em si mesmo? As críticas a Bush e ao caos em Wall Street estão na boca de todos os dirigentes do mundo. Mas o sinal mais patente da auto-segurança de Lula é outro: seu ataque aos jogadores da seleção. Não me lembro de nenhum presidente ter feito isso. Dizem que Médici fazia, mas ele era ditador. Você vê que na primeira vez que Lula chamou Ronaldinho de gordo, na Copa de 2006, o jogador retrucou e ele pediu desculpas. Agora, não: veio aquela resposta do goleiro Júlio César, mandando ele se mudar para a Argentina, e Lula nem considerou. Dizer que a seleção joga mal e o melhor jogador do mundo é um argentino é quase crime de lesa-nacionalidade (risos). E Lula faz isso. Já que falou em futebol: esse tipo de comportamento ajuda a dissolver o tal "complexo de vira-lata" que Nelson Rodrigues via no brasileiro? O fato de um ex-operário chegar à Presidência da República pelo voto e circular à vontade entre os chefes de Estado das grandes nações não é banal. Vivo há 30 anos fora do Brasil e circulo em vários lugares. Nunca vi o País tão respeitado como agora. Recentemente, o presidente da Vale do Rio Doce, Roger Agnelli, disse a mesma coisa: "Ando o mundo inteiro e todos elogiam o presidente, me dá orgulho ser brasileiro". Embora a pesquisa CNT/Sensus tenha detectado que 44% dos eleitores votariam em um candidato apoiado por Lula, as intenções de voto da ministra Dilma Rousseff não passaram de 8,4%. Lula tem dificuldade para transferir votos? A pré-campanha nem começou e o quadro vai se alterar. Penso que Ciro Gomes também tem grandes ambições e não desistiu de se candidatar com o apoio de Lula. Também é verdade que Dilma acumula ineditismos em seu projeto: ela nunca teve um voto na vida e se prepara para lançar-se como candidata governista à Presidência. O senhor disse que a popularidade de Lula está ancorada em parte nos resultados da economia. Se a crise financeira bater às portas do Brasil com força, esses índices podem cair de uma hora para outra? Aí, são outros quinhentos. Ninguém sabe aonde isso tudo vai dar, e são grandes os sinais de que o comando nos EUA está meio desarvorado. Se a crise afetar duramente a economia real, a popularidade de Lula pode desabar. Mas vale lembrar que os efeitos desse caos atual podem ser retardados: a crise de 29 nos EUA veio bater à porta da Europa em 1934 e 1935. O presidente foi questionado sobre a hipótese de um terceiro mandato e sempre foi enfático na negativa. Acha que pode reconsiderar? Acho que nem sequer há tempo hábil para uma emenda à Constituição com duas votações na Câmara e no Senado. Quando FHC fez essa modificação, foi em face da "ameaça Lula", um temor quase generalizado no Congresso de uma vitória do PT. Hoje, o establishment é Lula, e não há uma percepção como a de 1996. Não haveria consenso na mídia ou no Congresso para se viabilizar um terceiro mandato - que é raro nos outros países, enquanto a reeleição em dois mandatos era bastante corrente à época de FHC. Então Lula estaria administrando sua popularidade para retornar mais tarde ao poder? Sim, inteiramente. A própria escolha da ministra Dilma, em vez de alguém como o Ciro ou outro político que tenha vôo próprio, indica isso. Ele é candidato em 2014.

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