À luz do sol

Quem tem razão no bate-boca Joaquim Barbosa vs. José E. Cardozo? Os dois. E nenhum dos dois

PUBLICIDADE

Por Rafael Mafei Rabelo Queiroz
Atualização:
Estratégia. Pouco efetivo o ministro lembrar a ditadura para se defender Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

Os encontros do ministro da Justiça com advogados que defendem os envolvidos na Operação Lava Jato são a bola da vez. Tudo começou com uma reportagem de jornal, que virou um tuíte de Joaquim Barbosa, que se refletiu numa decisão do juiz Sérgio Moro, que finalmente levou a manifestações daqueles advogados e do presidente nacional da OAB em defesa de suas prerrogativas. Além, é claro, de esclarecimentos prestados pelo próprio ministro, garantindo que receber advogados faz parte de seu ofício e nunca atuou politicamente em favor de quem quer que seja. Para que a discussão não vire conversa de surdos, acho importante contemplar todos os pontos de vista sob sua melhor luz - sem interpretá-los, portanto, como falas de má-fé ou maculadas por segundas intenções impublicáveis.

PUBLICIDADE

Joaquim Barbosa tem um bom ponto de fundo, que foi mal articulado. Como ele não consegue não atacar advogados, sob qualquer pretexto, o que poderia ser um relevante argumento republicano perdeu-se nas suas picuinhas de sempre. “Sob a melhor luz”, coloquemos a culpa disso na limitação de caracteres do Twitter, que milita contra a precisão. Seu ponto principal é que assuntos jurídicos - isto é, sobre o cumprimento de deveres legais, o estabelecimento de sanções, a análise de provas, etc. - não deveriam ser tratados politicamente. Dado que a Justiça deve ser equânime e julgar igualmente todos, permitir a influência de políticos de alto escalão sobre o sistema jurídico tem efeitos antirrepublicanos: essa possibilidade não está à disposição de qualquer acusado, mas apenas daqueles politicamente bem relacionados, ou que podem pagar pelos honorários de advogados que tenham, eles próprios, acesso a esses círculos restritos de poder. Esse mesmo incômodo de fundo se manifesta com frequência em suas falas sobre a Justiça dos poderosos e dos oprimidos. Penso que também aí reside o incômodo, du jamais vu, em a presidente ter pedido ao Ministério Público Federal, no início do ano, um briefing sobre os possíveis ministros que nomearia, temerosa que estava do envolvimento de algum deles na Lava Jato. Ministério Público é órgão técnico e jurídico, disse JB, e não deve se misturar com as decisões do governo da vez.

JB erra, porém, ao dar, como fato consumado, que todos os advogados que recorrem a altas autoridades, na Lava Jato e em outros casos, querem ganhar no tapetão e fazer um jogo sujo de defesa. Advogados são livres, e precisam ser livres, para defender seus clientes amplamente. Isso inclui a liberdade de reunir-se com qualquer autoridade que queira recebê-los, e de fazer a ela qualquer pedido que não seja antiético (troca de favores, por exemplo) ou ilegal (propina, por exemplo). Nada disso parece estar em questão aqui. Segundo se noticia, os pontos trazidos pelos defensores ao encontro com o ministro - vazamentos seletivos, ilegalidades de provas - são todos técnicos e jurídicos. Se verdadeiros, prejudicam ilegalmente seus clientes. Advogados têm não só a possibilidade, mas, eu diria, inclusive o dever de lutar, com todas as armas legais e eticamente disponíveis, na defesa de todos os interesses por eles defendidos.

A polêmica, neste caso, parece estar relacionada à possibilidade de o ministro fazer pressão de bastidores em favor dos acusados. Se essa possibilidade é inferida pelo fato de advogados terem sido recebidos por ele em audiência, acho exagerada: o caso é notório e o envolvimento de pessoas do partido do ministro também; quisesse ele fazer pressão, faria-o melhor, porque mais ocultamente, sem se reunir previamente com advogados do caso. Sua posição de poder, ademais, implica estar ele sujeito a deveres de publicidade e transparência, tornando desaconselhável, embora possível, que ele adote como regra a prática de não receber advogados - e, se o fizesse, teria de não receber também os membros do Ministério Público, que são a contraparte da advocacia nos litígios criminais. Quem acha que o poder de uma autoridade é mais bem exercido assim ganha uma viagem à Coreia do Norte.

Qual é, afinal, a razão da celeuma? Ela se deve ao fato de que uma das partes envolvidas não adotou práticas recomendáveis de transparência e sujeição de controles inerentes a uma democracia republicana. Essa parte foi o ministro José Eduardo Cardozo. Faltou-lhe observar o conselho de Louis Brandeis, ex-ministro da Suprema Corte dos EUA: “Publicidade é o melhor remédio (...); a luz do sol, o melhor desinfetante”. 

Que o encontro com advogados não constasse de sua agenda, vá lá; imagino que uma agenda de ministro seja muito mais complexa do que aquilo que publica o cerimonial do ministério. Mas ele deveria, ao final do dia, ter mandado retificá-la para que nela constasse a audiência. Muito extemporaneamente foi divulgada a versão de que um desses encontros não apareceu na agenda do ministro por um erro informático, que deixou vários dias de seus compromissos em branco. Essa dúvida é contornável: se ele de fato reconhece o encontro com advogados como parte inerente ao exercício de seu cargo, imagino que essa não tenha sido a primeira vez que o fez. Por que não trazer a público as outras oportunidades em que se reuniu com defensores para tratar dos interesses daqueles por eles defendidos? Isso protegeria tanto ele quanto os advogados.

É pouco efetivo o ministro querer defender sua conduta neste caso lembrando a ditadura e as restrições à advocacia. Sob a melhor luz, não é isso que está em questão (embora o tuíte de JB assim tenha feito parecer). O que o ministro precisaria defender é que a forma pela qual se portou é não só legalmente possível, mas a mais compatível com o exercício transparente de seu cargo. 

Publicidade

Afinal, na ditadura faltava espaço para a atuação de advogados, é verdade; mas faltava também transparência e publicidade no exercício do poder. As duas coisas devem ser potencializadas conjuntamente. Caso contrário, sobra-nos uma Justiça suspeita de conchavos que, verdadeiros ou imaginados, são prejudiciais a sua legitimidade, que se ganha como a da mulher de César: parecendo, e não apenas sendo, honesta.

RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ É PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.