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A mais triste vitória

Pai da democracia corintiana, Sócrates nos legou uma lição de dissonância. Nada mais alvinegro que dar seu nome ao Itaquerão

Por Ronaldo Bressane
Atualização:

Domingo foi estranho. Logo ao acordar, fiquei sabendo pelo blog do amigo Xico Sá que nosso querido ídolo Sócrates tinha partido. Assisti ao jogo com o coração amarrado. Como todo corintiano sabe, e como todo anticorintiano desconfia, ganhar ou perder não importa, o que importa é estar junto: eis o significado de ser um fiel. Claro que ser pentacampeão brasileiro é incrível. Mas o travo, dividido na mesma cerveja com os alvinegros na casa em que via o jogo, amargava tanto na melancolia pela perda do símbolo maior quanto no despropósito em torcer para uma equipe contrária à filosofia socrática.Esse Corinthians de Tite e seu futebol "titebitate" é o oposto do talentoso esquadrão dos anos 80, de craques como o Doutor, Zenon e Casagrande, secundado pelo brio de Biro-Biro, Wladimir e Zé Maria. Talento oscilante - já que aquele time, se foi bicampeão paulista sobre o São Paulo, uma das melhores equipes da época ao lado do Flamengo, também caiu para a segunda divisão em 1981 e nunca venceu um Brasileiro. Mas trocaria a burocracia dos passes laterais de 2011 por uma única tabela genial de 1982, ou um só desconcertante passe de calcanhar do Magrão.Politicamente, este pentacampeão é bem diverso daquele bicampeão: se este é um clube forte, cujo maquiavélico cartola estica ao máximo o conceito de pragmatismo ao ser ao mesmo tempo filiado ao Partido dos Trabalhadores e funcionário de Ricardo Teixeira, aquele, um clube provinciano, sonhava com o poder repartido entre pequenos - tanto que, com ideário semelhante ao PT original, entrou para a história com a democracia corintiana, que mandava mais que os cartolas. (Em entrevista dada em 1983, Sócrates declarava ter votado em Lula para o governo paulista; dizia também que gostaria de morrer em um domingo, com o Corinthians campeão.)A morte de Sócrates divide a história do Corinthians em dois tempos opostos - trajetória parecida com a do próprio PT, partido ao qual, hoje, interessam mais os fins que os meios. Ao time dos anos 80, iluminado por relâmpagos de criatividade e suportado por uma massa de sofredores, contrapõe-se este todo-poderoso Timão que vence nada utopicamente em campo e, fora dele, vive de tenebrosas transações. Ontem tínhamos um Corinthians de oposição, identificado com as massas que combatiam a ditadura, e essas identificadas com os princípios do PT, a ocupar estádios alheios por falta de casa própria - como os 160 mil que apoiaram Lula no estádio de Vila Euclides, São Bernardo do Campo, 1979. Em 2011, temos um Corinthians de situação, ganhador, que plantou o técnico Mano Menezes na seleção, o ídolo Ronaldo no Comitê Organizador da Copa e o presidente Andrés Sanchez como diretor de seleções da CBF. Tudo dominado. E se, enfim, pode ter um estádio, é graças à mãozinha do ex-presidente Lula; afinal, aquela massa de sofredores se transformou na ascendente classe C, que hoje vai ao Pacaembu de SUV importado, paga R$ 200 por ingresso e R$ 300 por uma camisa lotada de patrocínios - fazendo da marca Corinthians a mais valorizada do futebol brasileiro. Se a utopia democrática prega que todo poder emana do povo, os petistas Lula e Sanchez, mais pragmáticos que idealistas, souberam capitalizar o poder da Fiel com esperteza.O nublado 4 de dezembro de 2011 marcou o fim de uma era. Ao fazer lembrar a beleza de seu futebol, a morte de Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira obscureceu o título do time que lhe deu fama, agora representado por um jogo medíocre. Pervertendo a máxima "nenhum jogador é maior do que o jogo", o Doutor ensinava a ser sem nunca ter sido: descendente da nobre estirpe dos artistas boêmios, sempre viveu com orgulho de seu lifestyle, mais cioso de sua classe em pensar do que em só jogar, defendendo que todo atleta seria responsável pelas opiniões e pela cerveja que cativa - nada de capitalizar em cima do biblicamente correto, como 99% dos jogadores de hoje. Com a bola no pé, mesmo sem vencer na seleção de 1982 (superior às de 1994 e 2002), sua rara originalidade o colocou na galeria dos melhores da história. Em sua desfaçatez pela competitividade do esporte - considerava o futebol uma arte -, Sócrates ensinava que o erro pode ser mais sublime que o acerto. "Nunca ter falhado/ Não importa/ Tentar outra vez/ Falhar outra vez/ Falhar melhor", diria o alvinegro Beckett. Domingo foi estranho, por isso, um dia corintiano: é da natureza de um fiel ser triste ao ser alegre. Em um dia cinzento, o rebelde Sócrates nos legou uma lição de dissonância e paradoxo. Nada mais alvinegro, então, que se harmonizem os polos contrários dando o nome de Sócrates Brasileiro ao estádio de Itaquera - em vez de ceder naming rights a uma empresa de olho na grana da Fiel. Ainda que o Doutor, crítico da CBF, não fosse muito com a cara da atual diretoria, seria bacana ver Sanchez & companhia ter a romântica capacidade de produzir um gesto dessa grandeza. Seria socraticamente corintiano.  

RONALDO BRESSANE É ESCRITOR, CODIRETOR DO DOCUMENTÁRIO SÓ QUEM É SABE O QUE É SOBRE A QUEDA DO CORINTHIANS PARA A SÉRIE B

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