A mão do machismo

Reação a campanha publicitária mostra que as mulheres querem ser vistas como são – sujeitos, e não bibelôs ou bonecas infláveis falantes

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Por Maria Lucia Homem
Atualização:

Eu poderia falar de Madalena, que foi morta pelo marido quando disse que queria se separar. Poderia falar de Ana, assassinada quando começou a sair com outro homem. Ou de Liz, morta pelo ex porque fazia sexo anal com o novo namorado. Ou Adriana, que perdeu a vida porque falou que o pau do marido era pequeno. Josefina, que levou uma porrada em público porque sorriu de um jeito que pareceu ofensivo a seu homem. Marta, que disse não para um cara na balada e ele quebrou seu braço. Ou Vanda: assassinada com a advogada num encontro de conciliação.

Essas histórias reais – e repetidas inúmeras vezes – foram coletadas pelo grupo de pesquisa sobre feminicídio e direitos humanos da professora Marta Machado, da GV-Direito. Mostram que a violência contra a mulher no Brasil é antiga e voraz. A situação retratada nas primeiras linhas é, por incrível que pareça, a mais comum: o homem mata porque a mulher não o deseja mais.

Internautas recusam-se a pagar tributo a um homem só porque lhes faz a corte Foto: DANIEL TEIXEIRA/AE

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Mas não vou falar sobre essas mulheres porque hoje quero falar de Daniel. Hoje é a véspera de seu aniversário de 13 anos. Quando ele tinha 9, deu o primeiro selinho. Aos 11, teve coragem de abraçar uma menina e se encostar no seu corpo. Aos 12, o primeiro beijo de língua. Seu coração explodia. Seu pulso, sua carne, suas memórias. Êxtase e confusão. Não é que ele não entendia o que estava acontecendo. Entendia, pois há anos isso era tema de brincadeiras com os meninos. Era basicamente sobre isso que eles conversavam nos quartos, nos banheiros, nos cantos da escola, no Whatsapp, nos bilhetinhos na sala de aula. Aqui trechos fornecidos pela escola: “A moça tá dando gostosinho pro cara mó pintudo no banco do parque, olha aqui o monte de camisinha”. “Eu perdi a virgindade aos sete meses, sou precoce pa caraio”. “Meu pau fica inxado de tanto que eu fico arrastando ele pelo chão da casa”. Às vezes, os bilhetinhos iam parar no colo das meninas. E eles faziam campeonatos e listas de conquistas. 

Assim, sem nem saber, iam se tornando pequenos machos. Constituindo seu desejo a partir de uma forma que, em última instância, os levava a desejar esta e aquela e aquela outra, e a empilhar seus corpos na montanha metafórica que iria construir seu panteão, presos que estavam ao círculo de consumo e descarte. Conquistar e descartar objetos, mulheres, informações, máscaras. O homem moderno se fazendo.

Madalena, diferentemente de Daniel, teve sua formação desejante na linha quase oposta. Ela brincou de princesa e sonhou com um homem que lhe desse amor, lugar, reconhecimento. Brincou de boneca para aprender a cuidar do filho que Daniel iria lhe dar. Aprendeu tudo: moda, dieta, maquiagem, exercício, informação, astúcia – para se fazer desejável e bela.

Esse encontro não tinha como dar certo. Nesse sentido, foi revelador o efeito que uma campanha de esmalte suscitou há alguns dias. A resposta foi direta: não. Não somos essas mulheres e nem todas estamos confortáveis no lugar de mocinha desejosa de encontrar um bom marido para amar e cuidar. Para lhe fazer o café, esperar um SMS, um telefonema, um pedido dele. E receber, em troca, um estatuto social, um nome, um jantar feito ou pago pelo provedor. 

As mulheres estão percebendo uma coisa simples: elas talvez não precisem de nada disso. E possam exercer sua sexualidade e seu afeto mais livremente, pois o fantasma da puta não as amedronta mais. (Parênteses: claro que ainda precisamos chamar de “puta” ou “vaca” as mulheres quando queremos expressar raiva, indignação, despeito. Para todas, motoristas ou presidentes. Elas ouvem. E continuam suas vidas.) 

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O que parece que as mulheres estão percebendo é que são sujeitos. Pensam e vivem por si, como qualquer subjetividade viva. Não são bibelôs ou bonecas infláveis falantes. São mulheres que podem querer um amor, um interlocutor, um parceiro. Porque querem, não porque precisam. Ou não. Podem querer um homem, outras mulheres, um casal, um trio, estar solteira. São mulheres. Ponto. Foi o que elas gritaram na rede esta semana explodindo as estatísticas dos Trending Topics do Twitter.

Mas voltemos a Daniel em seu romance de formação. Ele e os amigos escreviam mensagens e riam. Mas, na verdade, nem entendiam o que de fato era aquilo que Daniel vivia: o mistério do que o encontro com o outro – um outro corpo, outro sexo, outra mente – causava em seu corpo e, afinal, na sua pessoa. Daniel se achava inexperiente e ainda não sabia que o enigma do encontro com o outro e os pactos decorrentes disso têm dado corpo a séculos de debate, da metafísica à filosofia política, da psicanálise à neurociência, da poesia a qualquer seriado. Um enigma tão profundo que não deixava Daniel se concentrar nas tarefas da escola. Nas férias ele foi viajar. Beijou quatro meninas. Contou para o pai, confidente e amigo. O pai ria, todo feliz. Orgulhoso, repetia: quatro. Mostrava o número com os dedos: meu filho beijou quatro. Todos – os amigos, o pai, a mídia, o passado histórico – reafirmavam o canônico Ideal e achavam que a grande quantidade de fêmeas abatidas era o substrato do herói. Era esse o critério para a contagem do seu valor de macho.

Daniel não conseguia dormir essa noite porque amanhã ia fazer 13 anos e seu presente de aniversário seria uma ida ao puteiro. Estava agitado, aquela excitação misturada com pânico. Depois disso ele seria, tecnicamente, um homem. E poderia sair pela vida no exercício incessante de um desejo masculino consumidor de corpos e seres. Preso numa engrenagem perversa que, na outra ponta, não tem como não lhe oferecer fêmeas – ancestrais objetos fetichizados que as mulheres há muito tempo vêm sendo convidadas (ou obrigadas) a encarnar.

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Nesse sentido, a reação das mulheres, feministas ou não, foi reveladora de que esse estado de coisas não funciona mais. Mas, talvez, para além de não precisar pagar tributo a um homem que simplesmente lhes faça a corte ou o jantar, o mais interessante seria a mulher poder ser amada, desejada e bem tratada sem nem precisar pintar a unha. Revolucionária mesmo seria a transformação da forma falocêntrica com que se constitui o desejo e o próprio ser do “Homem”. Há muitas formas de se fazer homem, mulher, trans e o que quer que seja. O que importa é que o desejo possa ser o de cada um. Com todo o enigma e angústia que isso implique.

MARIA LUCIA HOMEM É PSICANALISTA, PROFESSORA DO NÚCLEO DIVERSITAS-USP E DA FAAP E AUTORA DE NO LIMIAR DO SILÊNCIO E DA LETRA (BOITEMPO)

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