A missionária da mão na massa

Com medidas caseiras e eficazes, Zilda Arns cumpriu sua missão de salvar a vida de crianças pobres

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Por José de Souza Martins
Atualização:

A notícia de que a dra. Zilda Arns Neumann, de 75 anos, estava entre as vítimas fatais do terremoto de terça-feira, no Haiti, repercutiu imediatamente como a grande perda que efetivamente é para o País. Ela ocorre num momento em que o Brasil dá sinais amplos de conformismo, abatido pelo nihilismo de que tudo que havia para ser feito, e nunca dantes fora feito, finalmente já o foi. Supostamente, nada mais nos desafia, nada mais resta que reclame a insurgência do espírito e nossa indignação moral e política. Sua biografia pública é exemplar, justamente, porque de certo modo começa quando a imensa maioria das pessoas já está se preparando para desistir, conformada com a proximidade da velhice. A dra. Zilda Arns formou-se médica e tornou-se pediatra e sanitarista, profissionalmente devotada à medicina pública. Enviuvara havia cinco anos quando recebeu do irmão, d. Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, o convite do Unicef para organizar o envolvimento da Igreja, no Brasil, no combate à mortalidade infantil. Costumava dizer que não havia por que complicar coisas que podem ser simples. Foi nesse espírito que acabou criando e presidindo a Pastoral da Criança, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Desenvolveu um método simples de disseminação de medidas de medicina preventiva, com base no recrutamento de voluntários e na ação comunitária. Todos se lembrarão da campanha do soro caseiro no tratamento da diarreia e da desidratação, que foi a referência de um conjunto de inovações no combate à mortalidade infantil. Seu grande segredo foi o de inocular na cultura popular da solidariedade vicinal e comunitária inovações médicas preventivas, naturais e simples, eficazes. Em 1985, o índice da mortalidade infantil havia caído para cerca de metade do que fora em 1965, de 116 para 62,9 por mil. Portanto, quando a dra. Zilda Arns assumiu a Pastoral da Criança, em 1983, a mortalidade infantil, ainda que alta, estava em franco declínio, consequência de décadas de silencioso empenho de médicos, sanitaristas e educadores sanitários. Mas se no Sul do Brasil a mortalidade infantil havia caído de 84 por mil, em 1965, para 39,5 por mil, em 1985, no Nordeste caíra, no mesmo período, de 153,5 para 93,6 por mil, índice altíssimo, indicação clara de um abismo cultural imenso entre as possibilidades oferecidas pela medicina e pela ciência e o que delas chegava às regiões mais pobres do País. Não era apenas uma questão de pobreza, de falta de meios, mas uma questão de bloqueios culturais conhecidos. É o caso da valorização conformista, sobretudo nas zonas rurais nordestinas, do anjinho como patrimônio religioso da família, o inocente que morre ainda no início da vida. Nenhuma indignação contra o que para muitos era a manifestação da vontade de Deus. Mas havia outros bloqueios, como o da alimentação teimosamente errada das crianças pequenas, como nos anos 60, quando as mães ainda teimavam no mingau de macaxeira, nutricionalmente pobre, contra o leite recebido gratuitamente. Faltava, portanto, não só o acesso aos recursos pediátricos apropriados, cuja disponibilidade se expandia, mas também a pedagogia que enfrentasse a ignorância, a tradição alimentar ultrapassada e até nociva à saúde e todos os bloqueios a uma prática de saúde pública que, de modo simples, salvasse vidas. O professor Walter Leser, que foi secretário de Saúde do Estado de São Paulo, em duas ocasiões, a partir de 1967, especialista em medicina preventiva, publicou naquela época um estudo com extenso rol de doenças de que ainda se morria em São Paulo para as quais, no entanto, a medicina já encontrara cura. Zilda Arns, que fez curso na mesma Faculdade de Saúde Pública da USP em que Leser foi professor, foi das pioneiras na opção pela medicina preventiva de massa com base num método artesanal. A Pastoral da Criança deu-lhe a oportunidade de pôr em prática sua criativa sensibilidade para explorar em favor da vida dos que iam nascer e dos recém-nascidos as possibilidades da sociabilidade comunitária e vicinal e da cultura popular. Adotou como ideologia profissional a ideologia do médico de aldeia. Rompeu, corajosamente, com a cultura dominante e elitista de recusa da cultura popular no todo, classificada erroneamente por muitos, em todas as áreas, como saber de gentes incultas e ignorantes, quando há nela valores socialmente positivos para a transição cultural baseada na ciência. Zilda Arns fez essa opção naturalmente, socializada que fora numa família rural extensa, muito católica, de cujos valores foi sempre virtuosa mantenedora. Nessa cultura simples e familista estavam as referências criativas para a ação da mulher que um dia decidira ser médica para ser missionária. Sua concepção de missão se fez na linha da fé encarnada, exercitada na prática viva da ideia de missão. No período de sua ação à frente da Pastoral da Criança, que basicamente se iniciou pouco antes do fim do regime militar, a mortalidade infantil no Brasil caiu de 62,9 para 23,6 por mil, redução altamente significativa. Isso foi conseguido com a revalorização do aleitamento materno, o uso do soro caseiro nos casos de diarreia, a utilização da multimistura na alimentação infantil, uma farinha feita com desperdícios, como pó de casca de ovo, semente de melão e folhas popularmente definidas como mato, como a do assa-peixe, rica em ferro. Tudo muito simples, como ela dizia. Com seu carisma, Zilda Arns mobilizou mais de 260 mil voluntários, acompanhando mais de 1,9 milhão de gestantes e menores de 6 anos de idade em todas as dioceses do Brasil, mais de 4 mil municípios e 40 mil comunidades, trabalho que se estendeu à África e a outros países da América Latina. Ecumênica, nunca restringiu o recrutamento e a missão aos católicos. Ecumênica, também, porque nunca partidarizou sua missão, o que fez da Pastoral da Criança uma pastoral singular, imune ao aparelhismo político que empobreceu significativamente as outras pastorais sociais. * Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Entre outros livros, autor de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

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