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A morte de Rigel Dantas

Como o fotógrafo das estrelas assassinou seu heterônimo, o aventuroso e sanguinolento Dantas

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Rigel Dantas nunca fotografou uma mulher pelada. Resguardada a perfeita anatomia de suas partes, pode-se dizer que não tem saco para isso. Não tem vocação para J.R. Duran. Seu negócio é o retrato sanguinolento, a vaca no matadouro, a polícia com os seus cachorros, o galo de briga, a pistola, os africanos armados de fuzis e metralhadoras, a peça de carne na gôndola do supermercado. Rigel Dantas é um Quentin Tarantino em formato de fotógrafo. Um Zé do Caixão que tivesse tomado um banho de loja. A despeito de sua temática, as fotografias de Rigel Dantas são de uma rara elegância - um Mojica de Armani. Algumas dessas imagens estão na Galeria Leme, onde uma exposição reúne fotos exclusivas de J.R. Duran. Em um predinho desenhado por Paulo Mendes da Rocha, no Butantã, em São Paulo, Duran pendurou na parede uns Rigel Dantas. Como se fossem obras de sua autoria. Estão lá o matadouro, a peça de carne, a pistola. J.R. Duran quer matar o Rigel Dantas. Para compreender o iminente assassinato de um pelo outro, é preciso entender quem é esse J.R. Duran. É um sujeito que não gosta de ver escrito o nome completo. Pergunte a ele o que vem a ser o seu J e o seu R. "Tome nota", ele diz. "O J escreve-se J-O-T-A, o R é E-R-R-E". Pouparemos Jota Erre de ver sua graça no jornal. Para não ser penalizado, o leitor poderá acessar na internet a wikipedia e verificar por conta própria tratar-se de uma coisa complicada. Nascido em Barcelona há 55 anos, Duran chegou a São Paulo quando tinha 18. Vinha de uma Espanha "conservadora e fechada, muito diferente dessa Espanha de hoje". Diante de "milk shakes" e "meninos dirigindo seus próprios carros", sentia-se "na América". O problema era identificar-se ao telefone: "Bom dia, aqui é o Fulano Não-sei-quê Duran". Quem??? Convicto da inviabilidade de seus dois primeiros nomes, pôs um ponto final em ambos. A língua, no entanto, continuou a ser uma pedra tanto dentro da boca como no sapato de J.R. Duran. No primeiro ano de colégio São Domingos, tomou bomba porque não falava português. Vem evoluindo desde então. Hoje está na fase Mangabeira Unger, porém com influências da Catalunha. O problema da língua dura ganha contornos dramáticos em se tratando de J.R. Duran. O fotógrafo de 109 capas de Playboy é uma pessoa tímida - uma timidez que já foi da quase patologia a uma sem-graceza hoje administrável. Nem essa centena toda de mulher pelada foi capaz de transformá-lo num sem-vergonha. "Fora do meu ambiente, eu entro mudo e saio calado." É por isso que Duran não freqüenta colunas sociais: porque ele é muito ruim de eventos sociais. Se ele estiver numa conversa sobre fotografia, vai gastar o seu português. Se fugir disso, o Duran terá desaparecido da roda um segundo antes. Não que ele não tenha nada a dizer. É um sujeito culto e muito bem informado sobre o que acontece no mundo, seja nas artes ou na política. Apenas costuma julgar inapropriado o momento para qualquer intervenção. Pela lógica da mineiridade, jamais deve ter dado bom dia a nenhum cavalo, o que é uma vantagem. Por outro lado, o Duran adolescente era um tímido "paralisado". Nas festas da escola, "o poste de garganta seca". Essa espécie de prisão de ventre do intelecto fez com que Duran mergulhasse numa produtiva introspecção. Aos 15 anos, já tinha lido boa parte dos grandes clássicos americanos e franceses. Gostava de Faulkner e Stendhal. O pai, um industrial do ramo da metalurgia, era dono de uma generosa biblioteca. Em Barcelona, a casa dos Duran funcionava como ponto de encontro de artistas, que se sentiam oprimidos por uma Espanha "franquista e obscura". O senhor José, o pai, era um Mindlin catalão, cercado de livros e metais por todos os lados. A senhora Núria era dona de casa. O J.R. (esse negócio de J.R. nos remete a Dallas, o seriado da televisão), este era apenas um mau aluno. Na sala de aula, enquanto o professor se esforçava nas explicações, Duran estava "sempre viajando", olhando para os lados e pensando, por exemplo, que ali era um microcosmo do mundo, "que ali se encontrava gente de todo tipo, as boas pessoas e os f.d.p.". Matemática que é bom o Duran não queria saber. Apesar da sua timidez, e quem sabe até por isso, ele era - e é - fascinado com gente. Ficava só reparando. Aqui no Brasil, o seu José descolou para o Duran um emprego de assistente no estúdio de um fotógrafo catalão chamado Giro. Duran "carregava equipamentos e pintava uns fundos", as paredes falsas que aparecem nas fotos de estúdio. O problema é que Giro só fotografava coisa. Nada de pessoa. O Duran foi embora ganhar menos em outro lugar. Começou a fazer suas próprias fotos. Naquela época, a fotografia era para ele um pretexto para se relacionar com os outros, especialmente as outras. "Era um passaporte para as boas coisas da vida." Nos trabalhos de moda, J.R. Duran foi "pupilo de Regina Guerreiro e Constanza Pascolato". Mas só virou esse Duran Duran, famoso de verdade, quando começou a fotografar para a Playboy, há 27 anos. A primeira foi uma Eni. A segunda, "uma ex-mulher do Chico Anísio", o que implica um infinito leque de possibilidades. Sua próxima capa pode advir desta mesma seara das ex. Ao invés de Chico Anísio, veremos se o passado absolve ou condena o senador Renan Calheiros, enrolado até o pescoço com a jornalista Mônica Veloso. Pois o J.R. Duran estava justamente sentado nesse seu trono de "fotógrafo das estrelas" quando Rigel Dantas, o sujeito lá do primeiro parágrafo, veio bater na sua porta. Isso aconteceu em 2000. Convidado por uma gráfica de São Paulo a editar de graça uma revista autoral, Duran concebeu e publicou, por 5 anos, a Freeze. Foram apenas nove números de um revistão que, se colocado de pé, media 50 centímetros de altura. Todos os exemplares foram distribuídos de graça. Uma beleza. Começou com 24 páginas, terminou com 64. Duran fazia o layout e as fotos. Como tinha liberdade total, começou a clicar aquilo que também lhe interessava, mas que não fazia sentido antes, quando os seus únicos canais de publicação eram as revistas de nu, a moda e a publicidade. "Fiz a Freeze para mostrar às pessoas que eu poderia fazer coisas que elas não imaginavam." Duran fotografou as tribos armadas na Etiópia e os gorilas de Ruanda. Foi a rinhas de galo e matadouros de boi. Não se converteu em fotojornalista. Levava consigo a mesma câmera pesada com a qual fazia trabalhos para revistas de moda e agências de publicidade. "Fotograva tudo com a mesma dignidade" - mas, estranhamente, omitia dos créditos das imagens o seu nome verdadeiro. Em algumas fotos, assinava como Rita Miaki. Nas outras, "as mais aventurosas", punha lá um Rigel Dantas, nome retirado da obra de Fernanda Young. Já se aventou que o personagem, um fotógrafo, seria na verdade o marido da escritora. Pobre Dantas - não se aventa um negócio desse nem na ficção. Nessa mesma ocasião em que J.R. Duran estava dando à luz Rigel Dantas, ele paria também sua literatura. Lançou dois romances policiais: Lisboa e Santos, ambos pela Editora Francis. Planeja agora um terceiro, cuja história vai se passar em Macau. Até o fim do ano, suas viagens à Etiópia viram livro pela Cosac Naify, com o título provisório de Cartas Etíopes. O aparecimento de Rigel Dantas coincide com o aparecimento de um Duran que a gente não conhecia. Esse Duran correu duas vezes o Rally dos Sertões. Na primeira oportunidade ficou em 52º lugar. Na vez seguinte chegou em 8º. J.R. Duran não gosta "de jeito nenhum da adrenalina do perigo". Mas desde que baixou nele esse Rigel Dantas, aprendeu a pilotar helicópteros e virou "um profissional" em viagens à África "menos palatável". Já esteve em Ruanda, Congo, Namíbia e, claro, Etiópia. Em qualquer dos lugares que vai, costuma escrever uma carta endereçada a si mesmo. Tem mais de duas centenas delas em um escaninho no seu estúdio. Nunca abriu nenhuma. É esse J.R. Duran que, estando exposto agora na galeria, acaba de matar o Rigel Dantas.

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