'À mulher é negada a universalidade quando fala de si', diz Rachel Cusk

Escritora canadense publica no Brasil o romance 'Esboço', primeiro de uma trilogia que mescla elementos de sua experiência pessoal com ficção

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Por Alessandra Monnerat
Atualização:

Apenas conhecemos o nome da protagonista de Esboço – o primeiro livro de uma trilogia da autora canadense Rachel Cusk – nas últimas 28 páginas do romance. Faye é uma escritora que vai ministrar aulas de criação literária em Atenas, na Grécia. Ela prefere ouvir a falar em longas conversas sobre relacionamentos com pessoas que encontra na viagem – um vizinho de assento no avião, um colega professor de literatura, um antigo amigo. Faye se divorciou recentemente e, com a perda de sua estrutura familiar, parece que também se perdeu o molde onde a encaixaríamos. É como se a autora te desafiasse a desenhar o caráter de sua personagem a partir dos espaços em branco que seus interlocutores deixam.

A escritora canadense radicada no Reino Unido Rachel Cusk, autora de 'Esboço' Foto: Fred Thonrhill/Reuters

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É fácil confundir o trabalho de Cusk com autoficção – assim como Faye, a autora é divorciada e mora no Reino Unido. No entanto, Rachel ressalta que o “eu” dos romances é um personagem criado, ainda que ancorado em experiências verdadeiras. A escritora contou ao Aliás, por e-mail, como foi o processo de composição da protagonista. “Faye foi minha tentativa de expressar uma fase particular da vida e do estado de ser, que pode ser descrito como ‘além da fé’”, diz ela. “Começou com a ideia junguiana do colapso da realidade pessoal na meia-idade. Eu me perguntava como isso se pareceria em forma literária.” 

A crise de meia-idade de Faye, no papel, parece uma fotografia um pouco borrada. É a captura de um punhado de dias em que a personagem não sabe bem quem é. Para conseguir transformar essa imagem em palavras, Cusk afirma que precisou “inventar uma nova forma”. De fato, Esboço soa diferente de outras coisas que você possa ter lido antes. É um romance experimental, mas a leitura não é difícil. Ao expressar o apagamento de Faye, a autora recorreu a uma linguagem prática, sem firulas, mas ainda assim emocionalmente densa. O que ela escreve soa imensamente verdadeiro, mesmo que às vezes contraditório, pois parece partir de vivências e observações reais.

Antes de Esboço e de seus sucessores, Trânsito e Kudos (ainda não publicados no Brasil), Cusk tinha experimentado no gênero de memórias – ela disse achar que seria uma forma de representar a experiência feminina de uma maneira que seria impossível por meio do romance. O último dos três livros que escreveu sobre a própria vida, no entanto, teve uma recepção controversa. Aftermath, sobre o processo de divórcio e separação da guarda dos filhos, foi criticado pelo caráter confessional. “Eu me desencantei com o gênero de memórias”, diz Rachel. “O tratamento violento que esses livros tiveram que passar se tornou muito cansativo para mim.”

Essa depreciação da obra de mulheres como algo puramente “pessoal” já foi discutida por outras autoras. Em Eu Amo Dick, publicado em 1997 e traduzido recentemente para o Brasil, Chris Kraus conta a história real de sua obsessão amorosa por um professor de crítica cultural. Mas o livro não é apenas sobre isso – é também sobre escrever sobre si mesma, ser ouvida e levada a sério. “Ser mulher ainda significa estar aprisionada em um estado puramente psicológico”, escreve Kraus. “Não importa qual ampla ou imparcial seja a visão de mundo formulada por uma mulher, sempre que essa visão inclui suas próprias experiências ou emoções, o telescópio acaba sendo apontado para ela.”

Cusk acredita que o problema da subjetividade na identidade feminina é “endêmico”. Quando uma escritora se torna o tema de sua própria obra, ela pode esperar uma recepção difícil, afirma ela. “A necessidade de personalizar a literatura de uma mulher é uma espécie de ato coletivo de desapropriação cultural: ela é negada a universalidade quando fala sobre si mesma; suas observações e suas comentários tornam-se só dela”, afirma ela.

Outras autoras têm se debruçado sobre a tarefa de colocar em palavras a subjetividade feminina – este ano, as livrarias receberam lançamentos de Sheila Heti, Ottessa Moshfegh e Sally Rooney, por exemplo. Ainda assim, trata-se de um ponto de vista subrepresentado. Rachel diz concordar com a noção de que escrever sobre a experiência das mulheres é, de muitas formas, revolucionário.

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“Essa ideia sustentou toda a minha carreira de escritora”, diz ela. “A experiência feminina permanece radical e inacabada e, para representá-la de forma verdadeira, paradigmas precisam ser quebrados. Para mim, esse processo tem sido cheio de riscos e dificuldades, mas também me deu a satisfação de sentir que eu posso ter capturado e articulado alguns aspectos originais da feminilidade.”

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