A 'noite do poder' de Morsi

Presidente egípcio exonera todo o comando militar e nomeia ministro da Defesa um 'companheiro de viagem' dos islâmicos

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Por Márcia Camargos e Aldo Cordeiro
Atualização:

Batizado como Noite do Poder, o 23º dia do Ramadã carrega um sentido especial para os seguidores de Maomé. Naquele momento o profeta teria recebido do anjo Gabriel os versículos iniciais do Corão, em um anúncio que mudaria toda a história do Oriente Médio. Não parece, portanto, mera coincidência que justo na data descrita como "melhor que mil meses" Mohamed Morsi, o primeiro presidente islamista do Egito, tenha exonerado, de uma só penada, o inteiro comando militar do país, encabeçado pelo temido marechal Hussein Tantawi.

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Aproveitando a atmosfera da Noite do Poder, Morsi pegou todos de surpresa. Isso porque, menos de três semanas antes da inesperada medida, ele anunciara o próprio marechal como seu ministro da Defesa. O mesmo fez com Sami Annan, chefe do estado-maior, tido por muitos como herdeiro político de Tantawi. Mantido a princípio no governo, acabou partilhando o mesmo destino de seu superior. A exemplo desse, Annan recebeu pela televisão a notícia do seu despacho para a reserva.

Como é de praxe na política egípcia, a decisão de Morsi foi cercada de sigilo, conspirações e uma boa dose de idiossincrasias. Pouco antes, quando um sinistro grupo de islamistas puritanos, provindos da Faixa de Gaza, matou 16 soldados egípcios na Península do Sinai, o comando da Irmandade Muçulmana foi denunciado por sua fraqueza. Aparentava ser incapaz de proteger o país contra os próprios fundamentalistas religiosos que integram o mesmo campo político dos irmãos. No dia posterior ao ataque, o presidente nem sequer foi ao funeral no Cairo. Acuado, Morsi temia a reação do público que, a sapatadas, expulsou seu primeiro-ministro do espaço aos gritos de "abaixo a Irmandade".

O curioso é que desde a revolução, ao longo dos quase 18 meses de governo, Tantawi transmitiu, de forma bastante convincente, a ideia de um alto grau de coesão interna do comando fardado. Porém, a velocidade com que Morsi conseguiu, a partir de uma posição de fragilidade, desalojar o marechal do poder revelou a verdadeira fraqueza do suposto bloco secular anti-islamista conduzido pela junta. Em vez de constituir um golpe de civis contra militares, a ação presidencial revelou uma aliança de Morsi com generais de baixa patente. Unidos, eles derrotaram o alto comando do Exército, responsável pela desastrosa transição pós-Mubarak, de inclinação laica. Se é exagerado afirmar que a recém-empossada liderança militar, representada pelo general Abdel Fattah al-Sisi, dá seu apoio irrestrito à Irmandade, ninguém duvida de que a simpatia de amplos setores do Exército pela islamização do Egito ajudou a selar o futuro da dupla Tantawi/Annan.

Imprevista, a atitude de Morsi também pode ser caracterizada como um tipo de golpe preventivo. Há algum tempo, adeptos da junta militar vinham falando de uma "segunda revolução" a ser realizada em 24 de agosto, contra a Irmandade. Entre seus principais entusiastas estava o criativo Tawfiq Okasha, ex-membro do partido de Hosni Mubarak e uma das figuras midiáticas mais famosas do país. Dono de canal particular de TV, Okasha não teme uma boa polêmica. Após repetidamente denunciar o caráter maçônico da conspiração que derrubou seu amigo Hosni, o apresentador, desprezando o calendário gregoriano, conclamou o público a preparar-se contra outra investida da maçonaria no dia 13 do mês 13 de 2013. Em conjunto com setores da imprensa tão levianos quanto ele, porém com enorme poder de fogo, incitava, em tons exaltados, a formação de uma "unidade nacional" entre povo e Exército para enfrentar os irmãos.

Assim, após o obscuro atentado no Sinai, cujos executores, alvos de intermináveis teorias da conspiração, continuam desconhecidos, uma janela perigosa abrira-se para uma possível derrubada de Morsi. Ciente dos riscos, antes de virar do avesso o comando das Forças Armadas, ele ordenou que o Exército respondesse sem meios-termos ao ataque de seus ex-correligionários fundamentalistas. Obedecendo às instruções, bombardearam pelo ar cidades dos simpatizantes da Irmandade no Sinai, em uma carnificina que não poupou civis nem inocentes.

Logo em seguida, após revogar a licença de transmissão de Okasha e confiscar as cópias de um jornal com chamadas convocando o Exército a depor o presidente, Morsi, que desde o ataque do Sinai vinha gradualmente afastando os aliados de Tantawi no Exército, partiu para cortar a cabeça da serpente.

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Agora, o atual ministro da Defesa, conhecido por suas convicções religiosas e visto como um "companheiro de viagem" dos irmãos, pode indicar o surgimento de um novo perfil para o comando do Exército egípcio. Uma organização que estaria mais preocupada com as questões do Divino do que se imaginava, firmando o Egito do futuro como uma nação ainda mais islamizada.

MÁRCIA CAMARGOS É ESCRITORA COM , PÓS-DOUTORADO EM HISTÓRIA PELA USP , ALDO CORDEIRO SAUDA É CIENTISTA POLÍTICO

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