A nova face da questão agrária

Renda da terra, em conflito com a defesa do meio ambiente, acabou por derrotar Marina Silva

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Por José de Souza Martins
Atualização:

A questão agrária ressurgiu, nestes dias, no cenário político e no cenário econômico com uma nova cara, tanto no que se refere ao protagonismo dos que na terra labutam, quanto no que se refere às funções econômicas da renda da terra. Para compreender-lhe os efeitos políticos, convém ter em conta que a formação do PT se deu baseada em três mitos de origem, no sentido quase antropológico da definição. Um desses mitos se refere à indústria e ao mundo moderno e político e dois deles se referem à terra e ao mundo tradicional e pré-político. Veja também: O mundo verde estava do nosso lado O primeiro mito é o do novo sindicalismo que, liberto do peleguismo varguista, daria à classe operária uma pureza política que lhe fora tolhida por manipulações do próprio Estado. Na verdade, o novo sindicalismo pouco difere do velho. Os dirigentes sindicais, libertos do Estado que os cavalgava, passaram a cavalgar por conta própria. A figura carismática desse mito é, sem dúvida, Lula. O mito do novo sindicalismo deu mais projeção ao PT lá fora do que aqui dentro, sobretudo porque acalmou as potências e o grande capital internacional quanto a essa nova lógica nas relações entre as classes sociais, oposta à da concepção comunista. O segundo mito foi o dos povos da floresta, convergência mítica de índios e seringueiros no restabelecimento imaginário do Éden. Uma recriação do mundo em que o lobo e o cordeiro bebem do mesmo esquecimento da imensa violência que a implantação dos seringais representou contra as populações indígenas da Amazônia. A figura carismática desse segundo mito de origem foi, sem dúvida, Chico Mendes, o suave ser humano assassinado quando estava sob proteção da polícia e do Estado. Também nesse caso, o mito produziu mais admiração lá fora do que aqui dentro, os povos da floresta trabalhando por quase nada para garantir o oxigênio do mundo. A importância do mito e de suas contradições apareceu na sua repercussão hollywoodiana. Houve figuras extraordinárias ao redor de Chico Mendes, gente sofrida e rija, sonhadora e inovadora, como a seringueira Marina Silva, analfabeta até tornar-se adulta, verdadeira amazônida em todos os sentidos. Ela é a carismática sobrevivente desse segundo mito fundante do PT. Sua demissão do ministério é como se Eva tivesse se demitido de suas funções edênicas. Foi ela derrotada pela renda da terra em conflito com sua defesa do meio ambiente. O terceiro mito de origem do PT é o relativo ao sem-terra, mito em oposição aos teóricos marxistas da história, que negam ao campesinato um lugar no progresso social e político das sociedades contemporâneas. O MST e a Pastoral da Terra levantaram-se valorosamente contra o pensamento de esquerda e transformaram o lúmpen, como o definia um dos dirigentes do MST, em personagem do processo político, capaz de colocar a reforma agrária na agenda do Estado. E a colocou. Como no caso dos outros dois mitos de origem do PT, o mito do sem-terra ganhou o mundo, por opostas razões. Para uns porque inverte as concepções da teoria e faz dos sem-terra protagonistas da luta pelo socialismo; para outros porque aponta um caminho de justiça para os pobres e famintos sem pôr em perigo o capitalismo. Os sem-terra protagonizariam uma revolução dentro da ordem. Mas a revolução dos sem-terra é também uma revolução dos sem-teoria, pois, desprovidos de um referencial teórico que lhes diga e nos diga em que os teóricos do lugar inócuo do campesinato no processo histórico se enganaram, inclusive Marx, e em que a prática dos sem-terra os desmente. Não obstante depender de mitos fundadores, o PT e o governo Lula colocaram a reforma agrária em banho-maria, não reconheceram o potencial supostamente revolucionário do MST e o substituíram, politicamente, pelo Fome Zero e pelo Bolsa-Família, que o deslocam do protesto social para a calmaria da assistência social. Ao desencadear o esvaziamento do MST o governo esvazia, também, esse outro mito de origem do PT, desenvolvendo programas agrícolas e concepções de ocupação e uso da terra que, por sua vez, esvaziam a função histórica da reforma agrária, pois estimulam a concentração da propriedade e fecham alternativas para a agricultura familiar. Os heróis já proclamados da política agrícola do PT são outros, não os sem-terra. Sub-repticiamente, na lógica própria do agronegócio empresarial, grandes conglomerados econômicos e financeiros internacionais descobriram a mina de ouro representada pela renda da terra no Brasil. Estão comprando e arrendando grandes extensões de terra no País, seja para revenda com a valorização especulativa decorrente da própria procura, seja para produção de grãos, como soja e milho, para exportação. Comparativamente baratas, em relação às dos Estados Unidos, as terras brasileiras podem produzir com baixos custos brasileiros mercadorias vendidas a altos preços internacionais. O investidor obtém, assim, um lucro extraordinário com a chamada renda diferencial da terra. Mas ao mesmo tempo transfere para os produtores de alimentos de consumo interno e para os consumidores os custos decorrentes da elevação do preço da terra estimulada pelo aumento da procura. Essa interferência inviabiliza o programa de reforma agrária, pois as desapropriações são feitas com base nos preços de mercado. O número delas deve diminuir e a reforma, na melhor das hipóteses, deve ficar circunscrita às terras ruins e distantes dos mercados, o que torna a agricultura familiar economicamente inviável. Um dos executivos envolvidos na onda de negócios fundiários disse claramente: "Nós não temos amor à terra". Exatamente o oposto da concepção mística da terra de trabalho dos sem-terra. O mito de origem do sem-terra para ele se perde no desconhecimento da força econômica da renda da terra, o preço do solo agrícola. Não só padecem a ex-ministra e os sem-terra com o papel salvador que o preço da terra parece ter na reprodução ampliada do capital. Também a teoria da reprodução pede socorro: a renda fundiária está enquadrando o capital. *José de Souza Martins, professor de Sociologia da Faculdade de Fisolofia da USP, é autor de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008)

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