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A Olimpíada e o império dos números

Uma difusa oposição China x Ocidente serviu de estímulo adicional para torcidas, corações e mentes

Por Flavio de Campos
Atualização:

Os Jogos Olímpicos de Pequim primaram pela grandiosidade dramática, pela sofisticação visual e pela ostentação tecnológica. Elementos perceptíveis na cerimônia de abertura, nas arenas esportivas e na infinidade de lágrimas, sorrisos, contrações musculares, bandeiras, recordes e outros gestos plasticamente capturados e transmitidos à farta. Tudo parecia dirigido por Zhang Yimou. O show confirma as considerações de Guy Debord acerca do espetáculo. Não se trata apenas de um conjunto de imagens, mas de relações sociais mediadas por elas. O espetáculo se apresenta ao mesmo tempo como a sociedade, como uma parte dela e como um instrumento de unificação. Para além da difusão massiva das imagens, trata-se de uma certa visão que é objetivada, resultado e projeto do mundo da produção. É fato que a maioria das empresas jornalísticas ocidentais comportou-se como o conviva que se regozija com a festa, mas não esconde sua intenção futriqueira, resguardada sob o sagrado manto da crítica. E que procura por protestos como quem sonha com algum deslize do anfitrião. Tibete - causa ímpar capaz de mobilizar as butiques de luxo dos Jardins - , autoritarismo, censura, pirataria, dublagem, exploração dos trabalhadores e a desigualdade social provocada pelo crescimento econômico chinês foram temas desenvolvidos nos mais diversos idiomas de plantão. Desde o período medieval, o Oriente é o lugar de projeções do Ocidente: exotismo, erotismo, seres fantásticos e monstruosos, abundância e riqueza. Passados tantos séculos, a China e o mundo islâmico mantêm-se no imaginário ocidental com o mesmo papel, como sua alteridade. No caso chinês, a despeito de um sistema econômico baseado na economia de mercado, de um regime autoritário constituído a partir de uma ideologia européia vigorosa nos séculos 19 e 20, e da rápida transição do comunismo para o consumismo. As imagens captadas na China impressionam não pela diferença, mas pela mesmice. A globalização desfigura as especificidades e provoca uma acumulação absurda de representações semelhantes. A difusa oposição China versus Ocidente no campo econômico, redefinida no campo esportivo pela disputa com os EUA durante a Olimpíada, é em grande parte fictícia. Ou melhor, componente do espetáculo. Um estímulo adicional para motivar as torcidas, os corações, as mentes e o consumo em todo o mundo. De Nova York a Pequim. Mas além da quase paradoxal presença de expressões patrióticas e nacionalistas, num contexto de mundialização, de legiões estrangeiras de atletas, treinadores, patrocinadores e empresas de material esportivo, a disputa entre nações parece responder a outra necessidade. Uma incontrolável tendência à quantificação do desempenho esportivo, a traduzir-se num quadro de medalhas que contabiliza e classifica os ganhos de cada delegação nacional. Sabe-se que o quadro de medalhas não é um instrumento classificatório reconhecido pelo Comitê Olímpico Internacional. Mas isso não importa. A mídia, os Estados, os atletas e os espectadores reconhecem-no. Mais ainda, o quadro revela uma visão preponderante sobre os esportes, ou seja, uma identidade quantitativa. Os governantes chineses, como outrora os soviéticos, os estadunidenses, os cubanos e os alemães, procuraram vincular as vitórias obtidas nas arenas olímpicas a uma imagem de superioridade civilizacional. Nenhuma novidade. O mantra composto pelo fair-play e pelo paraíso artificial propiciado pelos esportes se desmancha no ar não apenas com o chute do atleta cubano de tae kwon do Valodia Matos, com a recusa da medalha de bronze pelo lutador sueco Ara Abrahamian ou com os protestos de Fabiana Murer pelo sumiço de uma das varas para a execução de seus saltos. Protestos mitigados, medíocres até, se comparados aos ocorridos há 40 anos na Olimpíada do México: antes dos jogos, o massacre de estudantes pelas tropas de segurança mexicanas. E, no pódio da corrida dos 200 metros, atletas estadunidenses com punhos erguidos exibindo luvas negras numa alusão aos Black Panters. Definitivamente, 1968 não é 2008. Apesar da repetição sistemática de um suposto espírito olímpico de confraternização e superação, impera a lógica do mundo da produção. Dela decorre a divisão da humanidade em dois grandes grupos: winners e loosers. Vencedores e perdedores. Talvez isso permita distinguir o significado das lágrimas dos primeiros e dos segundos colocados. A expressão numérica do sucesso esportivo está vinculada, como é mais do que evidente, ao poderio econômico de cada país. Comprovável através de uma comparação óbvia e simples. O quadro de medalhas de Pequim tem entre os seus 16 primeiros colocados 12 dos países com maior PIB, de acordo com a lista do FMI de 2007. Quatro países furaram o bloqueio dos mais ricos em Pequim: Ucrânia (48º PIB e 11º em Pequim), Bielo-Rússia (67º PIB e 16º em Pequim), Quênia (79º PIB e 15º em Pequim) e Jamaica (108º PIB e 13º em Pequim). Ucrânia e Bielo-Rússia, vale ressaltar, são países herdeiros das estruturas esportivas soviéticas. Os dois últimos, Quênia e Jamaica, refletem a especialização sem fronteiras do atletismo. Ficaram de fora: Canadá (8º PIB e 19º em Pequim), Brasil (10º PIB e 23º em Pequim), Índia (12º PIB e 50º em Pequim) e México (15º PIB e 36º em Pequim). O caso brasileiro, sob todos os aspectos, aproxima-se da situação de México e Índia. Não é preciso nenhum sofisticado exercício reflexivo para perceber que uma das principais chaves explicativas reside na desigualdade social e na concentração de renda, cultura e oportunidades. A questão é definir como os espetáculos esportivos servirão de instrumentos para unificação da sociedade brasileira. Com o olhar deslocado para o quadro de medalhas, podemos pleitear mais investimentos e um programa ainda mais amplo de renúncia fiscal, visando, principalmente, a alimentar nosso ufanismo verde-amarelo. Ou então, noutra direção, concentrar esforços para a elaboração de programas de inclusão social a partir do esporte, vinculados à formação escolar. Por fim, limitar a ação dos tubarões empresariais e financeiros que criam em cativeiro, e alimentam com migalhas, nossos peixinhos dourados, prateados e bronzeados. * Flavio de Campos é professor do Departamento de História da FFLCH-USP

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