PUBLICIDADE

A ponte que resta entre morro e asfalto

No Rio de parlamentares milicianos, traficantes sádicos e polícia sangrenta, a salvação virá pela cultura popular. Já aconteceu uma vez, diz o escritor e jornalista

Por
Atualização:

Durante mais de um século, o carioca do asfalto olhou para cima e secretamente fantasiou a remoção da pobreza nos altos e nas encostas. O Morro do Castelo foi abaixo por volta de 1900. Nos anos 60 Carlos Lacerda removeu favelas. Mesmo quando algum governo, como o de Leonel Brizola, tratou com simpatia o morro, não procurou integrá-lo à cidade. Brizola abandonou-o ao tráfico que nascia. A rejeição social se instalou, como se o morro fosse um corpo estranho, e não parte do todo. Zuenir Ventura lançou o livro Cidade Partida em 1994, fruto de um olhar atento sobre as favelas. Desde então, tudo piorou. O carioca das classes médias persiste, intimamente, no sonho que o jornalista chama de "solução final". Sonha com o Exército que sobe, a polícia que atira e o confronto que consumará o fim. "Não é por maldade ou patologia", diz Zuenir. "É por medo e insegurança." Foi num dos períodos de maior insegurança na cidade, quando tudo parecia perdido em princípios do século 20, que ali pelo centro, entre os marginais, nasceu o samba. O samba integrou morro e asfalto. Hoje, jovens de classe média vencem medos e sobem os morros em busca do funk. Não querem drogas, querem a dança. Numa cidade cada vez mais agressiva, uma "verdadeira necrópole", Zuenir vê na cultura o último fio de esperança, o traço que ainda pode unir a cidade partida. Mas não há solução a curto prazo, como argumenta nesta entrevista exclusiva ao Aliás. Políticos presos como chefes de milícias, traficantes comandando currais eleitorais, polícia corrupta, medo na população. Ainda que vários fatores possam sugerir que o Rio não tem solução, Zuenir aposta o contrário, apoiado numa premissa básica: "O povo não é suicida". O que mudou desde a publicação de ?Cidade Partida?? Passei o ano de 1993 visitando constantemente Vigário Geral. Naquela época, o líder do tráfico era um rapaz chamado Flávio Negão. Ele havia sido criado lá, tinha uma relação afetuosa com a comunidade. As senhoras davam bronca nele. Ele se preocupava com melhorias, asfalto, iluminação. As instituições eram respeitadas. Ninguém tocava em jornalista, por exemplo. Na última vez em que conversamos ele me mostrou um fuzil que tinha adquirido. Era uma arma que podia atingir helicópteros. "Mas você vai usar isso?", perguntei. "Não, Deus me livre, se usar a polícia invade o morro no dia seguinte." Ele gostava de dizer que seus soldados não cheiravam nem fumavam, tinha a consciência de que comandava um comércio e não queria guerra com a polícia pois atrapalharia os negócios. Lá conheci o Elias Maluco, que comandou o assassinato de Tim Lopes. Era um dos soldados menores do Negão. Essa é a mudança. Os jovens traficantes, gerações depois, são viciados e não têm nenhuma responsabilidade. Já foram tantas invasões das várias facções nos diversos morros que não sobrou ligação afetiva. São loucos. Cheiram e saem matando com crueldade inominável. O traficante Robin Hood acabou. Quinze anos atrás, eu passava a noite numa favela. Não dá mais. Foi só o tráfico que mudou? A polícia continua com a mesma política de tratar a situação como guerra. Quando governou o Rio, Marcello Alencar criou um instrumento chamado "gratificação faroeste", que premiava com dinheiro os policiais que matavam mais. A gratificação caiu, mas o espírito persiste. A atual cúpula de segurança parece honesta. Mas ela acredita que deve subir o morro dando tiros e alega que os danos colaterais - a morte de crianças e inocentes - fazem parte da guerra. Quando você começa a acreditar que a polícia serve não para evitar a morte, mas para matar, esse é o resultado. O combate às drogas, hoje, mata mais do que as próprias drogas, uma incoerência. É claro que é preciso enfrentar. Mas deve se fazer isso com informação. Se tem gente inocente morrendo, está errado. O Elias Maluco foi preso sem que a polícia desse um tiro, porque houve apoio da inteligência. A atual polícia sai matando. É ela que decide quem é bandido, sem julgamento, sem nada. A última ação de grande repercussão foi a invasão do Morro do Alemão, no ano passado, que terminou com 19 mortos. Fui ver o resultado depois de a polícia sair. Havia marcas de bala para todo lado, mas o chefe do tráfico continuava no cume do morro. Se escondeu uns dias, voltou. Segundo as pesquisas, 90% da sociedade apoiou a iniciativa policial. É porque há a ilusão de que o enfrentamento funciona. Não muda nada. Dias depois, estava tudo igual. A polícia do Rio é a que mais mata. Não é também a que mais morre? A polícia do Rio mata quatro vezes mais do que a dos Estados Unidos. E morre muito. Morrem, nesses confrontos, mais de cem pessoas por mês. E não tem eficácia. Mata e morre sem nenhum resultado. O Rio está se transformando numa necrópole povoada por vítimas mortais. E a vocação do Rio não é esta - é a festa, a alegria, o congraçamento. Qual é a solução? Nos anos 80, durante o primeiro governo de Leonel Brizola, até por causa dos abusos da ditadura ele implantou um populismo de respeito aos direitos humanos. A polícia não subia em favela. As coisas, no Rio, acabam sendo oito ou oitenta. O que aconteceu? Os traficantes acharam uma maravilha, ocuparam e consolidaram seu território. Foi um período de total conivência com o crime, que acabou desmoralizando os direitos humanos. Conversei muito sobre isso com o sociólogo Hugo Acero, que foi subsecretário de segurança de Bogotá. Em 1993, a Colômbia tinha um índice de homicídios de 80 para cada 100 mil habitantes. Caiu para 18. Como fizeram? Houve enfrentamento, mas a polícia não pode entrar no domínio do tráfico e depois sair. Tem que continuar. A ocupação não pode ser apenas policial. Tem que levar escola, posto de saúde. No governo Brizola a polícia não subia, mas o Estado também não. Uma vez, vi a cena de um menino de 2 anos que teve desidratação. O traficante chegou e o levou para o hospital. Vai explicar para a mãe do menino que ele é um malfeitor... Esse vácuo do poder público, naquele primeiro momento, foi ocupado pelo tráfico. Hoje, a situação piorou muito. Essa semana, um deputado estadual foi preso, acusado de comandar uma milícia. Seu irmão, um vereador, está na cadeia desde dezembro. De onde vem a promiscuidade entre política e crime no Rio? Temos uma cultura de promiscuidade no Rio. Por um lado, ela se manifesta na informalidade carioca. Por outro, é o desrespeito. É uma cidade ilegal na qual todos desobedecemos às leis. Alguns meses atrás, o deputado estadual Álvaro Lins (PMDB), que dirigiu a Polícia Civil no governo de Rosinha Garotinho, foi preso - mas seus colegas na Assembléia Legislativa o soltaram. Agora é a vez do deputado Natalino Guimarães e seu irmão. A filha de um deles já é candidata a vereadora e provavelmente será eleita, porque eles comandam um território cativo, em Campo Grande, no qual controlam os votos. Segundo a polícia, comandam uma milícia que tem nas suas contas centenas de mortos. Mas lembremos do passado. Quando o líder dos bicheiros, Castor de Andrade, ia para a avenida assistir aos desfiles de carnaval, recebia em seu camarote toda a sociedade carioca. Todos achavam muito natural ser convidado do "doutor Castor de Andrade". Essa miscigenação que existe no Rio é uma mistura alegre de classes que a praia facilita, mas tem esse reverso que é a promiscuidade. É um terreno pantanoso, muito próprio da cidade. As milícias fazem tráfico? Não, não fazem. Então a violência do Rio já independe do narcotráfico? Essa é uma tendência evidente. Agora, sobre as milícias, a gente sabe muito pouco - não sabemos sequer a extensão desses grupos. Dizem que de cada cinco favelas, elas dominam uma. As milícias descobriram que poderiam faturar muito, de uma maneira mais tranqüila, taxando serviços e instituindo uma máfia. Controlam as vans, a entrega do gás, a televisão via o "gato" da Net. Faturam talvez mais do que o tráfico e sem o estigma. Já ouvi depoimentos de gente que mora perto da favela de Rio das Pedras dizendo "agora dá para dormir com as janelas abertas". Você imagina o que é isso para o morador daquele lugar. Antes, quando nem todo o mal das milícias tinha vindo a público, elas foram tratadas como alguma coisa que estava pondo ordem na casa - podiam até ser meio exterminadoras, mas não eram corruptas. Essas milícias organizam até a recepção do nordestino que chega para morar na favela. Conseguem para ele o primeiro emprego, às vezes até uma casa. E ele terá que pagar por isso, evidentemente. Vai ficar sob o domínio dessa organização. Mas as milícias são tão violentas quanto os traficantes? Em Campo Grande, na região da milícia liderada supostamente pelo deputado Natalino Guimarães, a taxa de homicídio caiu em quase 30% após a prisão dele. São violentíssimas. Agora, se esse pessoal é capaz de entrar na favela, ocupar o espaço e expulsar o tráfico, por que o Estado não fez isso antes? É uma pergunta que se coloca. Por que isso nunca foi tentado? Por que não se faz uma ocupação gradual de cidadania, aquilo de que o Betinho falava? Há quem argumente que tudo poderia ter sido evitado se a política de remoção de favelas do governo Carlos Lacerda, nos anos 60, tivesse sido levada adiante. Você concorda? É preciso lembrar que aquela política, que criou bairros populares para a transferência dos moradores, como a Cidade de Deus, não levou emprego para aquela região nem implantou uma rede de transporte público que servisse à população. Grande parte daqueles chefes de família transferidos para longe continuaram trabalhando na zona sul, e constituíram novas famílias. Foi uma política desagregadora. Talvez porque previsse em que a expansão das favelas ia dar, o governo Lacerda foi corajoso. Mas não deu condições de fixação daquele novo morador e nenhum dos governos seguintes deu continuidade ao processo de remoção corrigindo os problemas iniciais. Os mesmos críticos argumentam que, quando permitiu o uso de alvenaria nos morros, Leonel Brizola contribuiu para a fixação definitiva das favelas. Essa fixação seria inevitável. O problema foi a falta de planejamento. Já que os barracos precários seriam substituídos por construções de cimento e tijolo, deveria ter havido um plano de urbanização. Mesmo quando os governos têm a melhor das intenções, olham para a favela como algo que não faz parte da cidade. Nós todos fazemos isso: achamos que aquilo é um corpo estranho. Não percebemos que a favela também é Rio. Naquela época, deram material de construção e disseram para os moradores, "se virem". Isso nunca aconteceria em Ipanema. O carioca sonha com o dia em que se livrará da favela? As favelas do Rio começaram com duas migrações, no início do século 20. Uma foi a dos soldados que derrotaram Canudos e, trazidos para o Rio, não tinham onde ficar. Ocuparam um morro. A outra foram os moradores pobres do Morro do Castelo, removidos dali quando foi posto abaixo pela urbanização impetrada pelo prefeito Francisco Pereira Passos. Há muito que se tenta tirar gente pobre de onde mora. Abriram as avenidas, mas, como não tinham para onde mover aquela gente de segunda categoria, transferiram para outro morro. A ironia da história é que, ao levar para os morros, eles estavam dando para o narcotráfico do futuro a melhor posição de tiro. Jamais houve política de regularizar o uso do solo nos morros. Sempre se encarou a favela como problema. Nunca se quis transformar a favela num bairro, como Alfama, em Lisboa. Alfama era isso. A população da favela, quem é? É a população de serviço da cidade. A classe média olha com desconfiança para o morro, mas esquece que o ascensorista, o motorista, a empregada doméstica, faxineiros, todos vêm das favelas. Essa integração entre o morro e o asfalto nunca foi feita. Ela só acontece do ponto de vista cultural. A cultura do Rio é uma de inclusão. A cultura tenta unir o que a economia separa. Nunca houve tentativa de integrar morro e asfalto? Sim. O projeto Favela-Bairro, durante a primeira passagem de Cesar Maia pela prefeitura, teve boas intenções e alguns bons resultados de urbanização. Mas não resolveu o problema do tráfico. Chegamos ao absurdo de achar que a população da favela é conivente. Não. O que acontece é que ela está inteiramente subjugada por uma tirania que detém o poder econômico, político e militar. Existe um desejo de extermínio por parte da classe média? Existe. Mas veja, isso não é por maldade ou crueldade. Não é uma patologia. É o medo que leva a isso. Vivemos uma situação de paranóia em que a morte daquele que se considera o inimigo vem pelo desejo de segurança. A questão é que a morte não resolve. Leva a mais morte, mais crime, mais medo. E persiste essa fantasia da "solução final", de resolver tudo de uma vez com o extermínio. Como o morador da favela lida com essa rejeição do asfalto? Ele rejeita na mesma proporção. O favelado tem orgulho de onde mora. Ao contrário do que pensamos, ele tem muito amor por aquilo lá. O ator principal de Era uma Vez (novo filme de Breno Silveira), que inclusive tem como subtítulo Uma História de Amor numa Cidade Partida, mora no Morro do Vidigal e diz que, mesmo depois do filme, vai continuar lá. A irreverência do Rio é sempre celebrada. Mas ela não tem um outro lado? Essa constante quebra de regras e flerte com a infração não torna o carioca agressivo? O Rio sempre foi uma cidade muito anárquica, no sentido de ser muito irreverente, indisciplinada. Isso, levado às últimas conseqüências, denota uma cidade que não quer se sujeitar às leis e às regras. É o lugar em que o motorista de táxi sugere "doutor, vamos fazer uma bandalhazinha aqui, a gente pega essa contramão..." E você, que quer chegar na hora, diz: "Tá ótimo, pode fazer". Claro que isso leva à indisciplina urbana, à permanente desobediência cívica. Claro que a conseqüência é agressividade, as pessoas simplesmente se sentem no direito de transgredir. Outro dia, vi um sujeito buzinar atrás de uma senhora que esperava o sinal abrir. Ele pôs a cabeça para fora e gritou: "Você não está na Suécia, não, ô perua!" Há uma degradação do convívio. Mas o Rio sempre foi uma cidade amena, cordial. E ela se degrada unicamente por causa da impunidade. Só por isso. Não acho que o motorista carioca seja menos educado do que o de Paris ou Nova York. Lá, o sujeito paga multa pela infração. Mas o Rio tem momentos de euforia e de baixo astral. Por isso é tão difícil analisá-lo com maniqueísmo. Um colega francês que esteve aqui para o réveillon, estranhou: "Aqui não é a cidade da violência? Então como vocês fazem uma festa com 2 milhões de pessoas e não há nenhum incidente?" Afinal, o Rio é cordial ou violento? É as duas coisas, e para o francês cartesiano é difícil entender. O Rio está culturalmente decadente? Não. A cidade tem uma capacidade de dar a volta por cima, que se manifesta ao longo de sua história. Na virada do século 19 para o 20, a decadência era muito pior do que hoje. Os navios passavam a 40 milhas de distância porque havia surtos de febre amarela, tifo, todas as epidemias. A cidade estava decomposta. Mas enquanto isso, na Praça Onze, um grupo de pessoas perseguidas pela polícia estava gestando uma das manifestações culturais mais ricas do mundo, que é o samba. Em 1993, fui com o DJ Marlboro, então desconhecido, a alguns bailes funk. Na minha primeira vez, fiquei horrorizado com a violência - uma violência que é muito mais coreográfica do que real. O Marlboro me disse assim: "Olha, o funk vai tomar conta do Rio". Eu ri dele. Pensava: "Ele acha que uma manifestação dessa vai passar na televisão". Pois bem, anos depois isso aconteceu. Mas o funk não é como o samba, é? Os meninos de classe média que sobem o morro não para cheirar, mas para ir ao baile, adoram. O Marlboro brinca comigo: "O funk está soldando a cidade partida". E você acha que está? De certa forma, sim. Do ponto de vista cultural, sobretudo musical, não tem apartheid. O samba já tinha feito isso. Agora é o funk. A influência da moda hip hop, do sujeito com o boné virado, o cofrinho da menina aparecendo na calça - isso fez a periferia entrar no centro. No meio universitário sua música está entre as preferidas. A cultura, no Rio, sempre fez a ponte entre morro e asfalto. Você acha que leva quanto tempo para resolver o problema? A longo prazo, sou otimista. Não o otimista babaca. Mas a própria sociedade, embora alienada, já sentiu na carne o problema da bala perdida. A solução não é a segregação. A sociedade pode ser insensível, mas não é suicida. Fatalmente chegará à conclusão de que é preciso incluir. Ninguém pensa mais em remover favelas. As alternativas de apartheid estão esgotadas. Como a saída não é o aniquilamento nem a guerra, de partida só há uma solução - unir e ceder à vocação do Rio: o encontro, o congraçamento, a festa. Você escreveu sobre 1968 e voltou ao tema noutro livro. Escreveu sobre Chico Mendes e voltou à questão. Voltaria à cidade partida? Só quando a cidade deixar de ser partida. Recontar a mesma história, só que piorada, não dá ânimo.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.