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A quem interessa isolar o Irã?

Explicações na entrevista de um pensador que radicaliza na defesa da tolerância

Por Christian Carvalho da Cruz
Atualização:

Não se deixe enganar pela voz pequena e rouca do filósofo italiano Gianni Vattimo. Ouvi-lo ao telefone é como ler a Tabacaria, de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa. Um soco por linha. Nascido em Turim, onde ainda ensina na universidade local, especialista em Nietzsche e Heidegger, eurodeputado em segundo mandato, mais de 20 livros publicados (entre eles O Fim da Modernidade e Depois da Cristandade), católico, comunista e homossexual, às vezes Vattimo parece querer cantar que não é nada, nunca será nada, não pode querer ser nada neste mundo que "nada aprendeu com a crise dos mercados mundiais".

 

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Aos 73 anos, está profundamente desiludido com sua Europa ("uma colônia americana") e com sua Itália ("uma colônia vaticana"). Mas tem em si todos os sonhos do mundo quando se volta para a América Latina. Acredita que, com Lula à frente, o continente pode finalmente se unir em torno de algo que não sejam "idiotices do passado como a Operação Condor". O Brasil em particular, ele avalia, já se tornou um fator de equilíbrio internacional, uma nação a ser ouvida quando se dispõe a ajudar no processo de paz do Oriente Médio. Não por outra razão, viu como acertada a decisão do governo brasileiro de receber - e não isolar - o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad essa semana. Além disso pede liberdade para o ex-ativista Cesare Battisti, encarcerado em Brasília, e, num grito engasgado contra o papa Bento XVI, dispara: "Eu gostaria de ir à igreja sem ser considerado um monstro porque sou gay".

 

Em resumo, Vattimo é um radical, como se verá nesta entrevista que concedeu de seu gabinete no Parlamento Europeu, em Estrasburgo (França). Por trás das tintas aparentemente maniqueístas de suas palavras o que há é um radical pela tolerância, pelo pluralismo de ideias, comportamentos e religiões - para ele, as únicas forças capazes de emancipar o ser humano, reduzir a violência e a injustiça social.

 

Essa semana o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi criticado no Brasil e no exterior por receber em Brasília o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, que também esteve na Bolívia e na Venezuela. Quem é Ahmadinejad para o sr.?

Tenho reservas sobre certos comportamentos de Ahmadinejad , que não são novos em relação a outros presidentes que o precederam. Não podemos colocar tudo na conta dele. A questão das eleições supostamente fraudadas é complexa. Os resultados foram refutados pela oposição, e oposição está aí para isso. Não estou convencido de que seja verdade que Ahmadinejad tenha vencido com irregularidades. Ele é, sim, o expoente de uma maioria popular pouco liberal aos olhos europeus. Mas daí a exigir que ele seja diferente vai uma grande distância. Portanto, não acho absurdo que Lula o tenha recebido. Ao contrário, acho fundamental que haja oportunidades de encontros com Ahmadinejad que não sejam só ocasiões de maldizê-lo por ser inimigo de Israel e dos Estados Unidos.

 

O sr. gostaria de viver no Irã de Ahmadinejad?

Obviamente que não, por motivos homossexuais. Porém, politicamente, o importante é não fazer dele um diabo.

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O Brasil acredita ser capaz de desempenhar algum papel no processo de paz no Oriente Médio. O sr. acha que o País tem esse peso internacional?

Estou convencido de que Lula pode liderar uma força mundial empenhada em aproximar Ahmadinejad de países liberais. É melhor levar Ahmadinejad a sério do que isolá-lo, porque as razões pelas quais o isolam são pouco razoáveis. Ahmadinejad quer fazer a sua bomba atômica? Eu duvido, porque é justo pensar - como pensa Lula - que ele pretenda usar a energia nuclear para fins pacíficos. Mas digamos que seja verdade, que Ahmadinejad queira ter uma bomba atômica. Isso não me escandaliza. Todos os países do clube ocidental a tem. Israel, seu vizinho, a tem. E Ahmadinejad não pode querer tê-la? Baseado em quais princípios?

 

Talvez baseado no fato de ele negar a existência do Holocausto.

Existem muitos judeus, israelenses inclusive, que são críticos da política de Estado de Israel. Descobri em minha história familiar que meu sobrenome, Vattimo, vem de judeus convertidos à força no passado. Isso me dá o direito de ser mais crítico. Parece-me excessivamente americano dizer "você não deve receber Ahmadinejad".

 

De que maneira o Brasil pode contribuir para a paz no Oriente Médio?

Fazendo contraponto aos Estados Unidos. A força econômica crescente e o respeito político conquistado fazem do Brasil um elemento de equilíbrio internacional. Até agora foram os Estados Unidos que deram as cartas, dizendo o que Israel devia fazer. Só que Israel sempre fez o que quis. E esse é um dos grandes entraves para a paz.

 

Se os EUA não conseguem, por que Lula vai conseguir?

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O fato de Lula falar com Ahmadinejad elimina o hábito que domina toda a imprensa ocidental de observar a vontade americana, que é: "Com Ahmadinejad não se fala". Isso é o que fortalece a direita israelense, a agressividade israelense. Então, se Lula se aproxima de Ahmadinejad simplesmente o retira de sua condição de pária. Isso deve ajudar a limitar a agressividade israelense contra os palestinos.

 

O sr. vê solução para o conflito israelense-palestino?

Israel ajudaria se interrompesse sua política de expansão imperialista e racista. Por que Israel deve ser um Estado onde os palestinos têm menos direitos que os judeus? Talvez a única solução seja ter um Estado único que comporte Palestina e Israel sob administração da ONU. Todos os programas de dois Estados separados avançaram apenas com ofertas ridículas feitas por Israel aos palestinos. Não acredito mais na solução de dois Estados separados. Estão tentando faz 40 anos...

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A Europa de Churchill, De Gaulle e tantos líderes não tem mais peso nos processos internacionais?

A Europa é um continente que permanece importante por razões econômicas, tecnológicas, etc. Mas, para mim, se não nos salvarem vocês, latino-americanos, nós nos dissolveremos. Conto sempre o seguinte episódio: eu era já parlamentar europeu quando Lula se elegeu presidente pela primeira vez. Na manhã em que soubemos da eleição dele entrei no Parlamento e senti um grande clima de excitação, até nos setores de direita. A Europa se sentia, e se sente ainda, uma colônia americana. A ideia de que Lula finalmente tinha se tornado presidente do Brasil com um programa que não consistia em seguir às cegas a cartilha de Washington, mas previa uma polícia autônoma, reconfortou a Europa. E eu continuo dizendo que só a América Latina pode salvar a Europa.

 

O sr. não está exagerando?

Veja, a União Europeia acabou de nomear uma ministra de Relações Exteriores que é uma baronesa que jamais foi eleita em nenhuma eleição na vida (a inglesa Catherine Margaret Ashton). Ela está lá porque herdou um título de lady e, como tal, uma cadeira na Câmara dos Lordes da Inglaterra. O que podemos esperar de uma Europa assim? A dimensão desse personagem mostra que a Europa não quer jogar a sério. Estamos fazendo a Europa dos governos, não a Europa dos cidadãos. Na América Latina hoje se desenvolvem regimes mais democráticos do que aqueles patrocinados pelos Estados Unidos no passado. Lula e a América Latina podem limitar o poder americano, intolerável em questões de guerra. No dia em que o Brasil criticar duramente a política dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão os americanos pensarão duas vezes antes de continuar essas guerras. Nós europeus, ao contrário, estamos sempre ligados a isso. Sobretudo os italianos, que engrossamos as chamadas forças de paz encabeçadas que nada mais são do que forças de guerra travestidas.

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De que forma a América Latina seria capaz de conter essa decadência europeia?

O essencial está na política. Faz-se necessário uma parceria preferencial entre Europa e Brasil, Europa e América Latina; não Europa e Estados Unidos. Eu gosto de pensar que só a existência de Lula é tão significativa para nós... Recentemente alguém do Brasil me disse que não é bem assim internamente. Pode ser, não acompanho de perto as questões internas brasileiras. Externamente, no entanto, é um sonho realizado ter Lula e o Brasil no comando de uma América Latina unida. Agora podemos esperar um futuro em que o continente se una em torno da política e da economia e não em torno de idiotices do passado como foi a Operação Condor.

 

Nessa Europa que o sr. diz estar à beira do precipício, qual tem sido o papel da Igreja Católica comandada pelo papa Bento XVI?

Na Itália a Igreja Católica sofre de um delírio de onipotência que pode levá-la ao derretimento. Quero que ela sobreviva, porque sou cristão. Mas a Igreja precisa ser salva dos papas. O papa Ratzinger, com seu frenesi de sufocar a vida, a família, a sexualidade, com base na ordem da natureza... Isso não faz sentido. Ele fala sempre em lei natural porque quer impor suas convicções também a quem não crê. A Itália é uma colônia vaticana, não se pode fazer nada. Não se pode falar de eutanásia, de união civil entre homossexuais. Pra mim, o cristianismo deve se desenvolver como caridade e humanismo. Todo o resto, os cultos, os milagres, as superstições me embaraçam. Eu gostaria de poder ir à igreja sem ser considerado um monstro porque sou gay.

 

Que avaliação o sr. faz da crise financeira mundial? Ela pode vir a construir um mundo mais justo na medida em que golpeou o capitalismo?

Ma che... Era uma grande ocasião para rever algumas coisas, algumas crenças. Mas como reagiram os governos europeus? Tomaram medidas simplesmente para restaurar o capitalismo exatamente como ele era. Não pensaram nem por um segundo que em dez anos estaremos na mesma situação. Os jornais já dizem que recomeçou a especulação imobiliária nos Estados Unidos. É exatamente o mesmo ciclo. Nada mudou. Não houve nenhuma novidade na regulação da economia, novos acordos. Apenas financiaram as dívidas dos bancos para que os danos não fossem maiores.

 

Podemos falar agora do ex-ativista italiano Cesare Battisti, que está preso no Brasil?

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Era justamente o assunto que eu queria evitar. Um caso espinhosíssimo. Acompanho bem o assunto. Primeiro, não é verdade que não exista justiça na Itália. Podemos confiar nos tribunais italianos, afinal (o primeiro-ministro Silvio) Berlusconi tem pavor deles (risos). Também não é verdade que Battisti corre risco de vida na Itália. É verdade, porém, que ele foi julgado à revelia. E esse não é um exemplo de processo judicial que se possa dar ao mundo. Além disso, depois de ter escapado da Itália, Battisti sempre levou uma vida de cidadão exemplar. Sou favorável à permanência dele no Brasil, a um ato de clemência. Deem a ele a possibilidade de morar no exterior e encerremos o assunto. Já se passaram dezenas de anos. Sou contra uma justiça feita com contornos de vingança. A extradição para a Itália seria, objetivamente, uma vitória da direita. E isso não me agrada.

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