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A realidade fora do tribunal

Para médico, mulheres devem receber as informações do diagnóstico e do prognóstico; a partir daí, cabe a elas decidir

Por Thomaz Gollop
Atualização:

Mesmo depois de votada a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 - Anencefalia -, é preciso esclarecer pontos importantes. Várias lições foram aprendidas por todos que acompanharam cuidadosamente a votação encerrada quinta-feira no Supremo Tribunal Federal (STF). Quase ao final da votação o ministro Lewandowski afirmou que haveria graus variados de anencefalia. A ciência estabelece que anencefalia é uma malformação congênita grave e incompatível com a vida, caracterizada por ausência de encéfalo e de crânio, permanecendo apenas a base do crânio. Ela é uma entidade única e não é subdividida em graus. Em 100% dos casos é mortal. Os fetos portadores dessa anomalia sobrevivem minutos ou dias após o nascimento. Anencefalia é um diagnóstico preciso e único: ausência de crânio, encéfalo, existindo apenas a base do crânio. Existem outras malformações do sistema nervoso que são raras e distintas da anencefalia: acrania e merocrania, das quais não trata a ação apresentada ao STF.

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Outra questão importante: autorizada a antecipação do parto em gestações acompanhadas de fetos anencéfalos estaria, segundo alguns, aberta uma porta para a ampliação dos permissivos legais do aborto. Certamente não, levada em consideração apenas essa decisão do STF. Muito bem falou o ministro Ayres Brito em seu voto: "Todo aborto é uma interrupção de gestação, mas nem toda interrupção de gestação é um aborto". Em todos os fóruns, nacionais e internacionais, incluído nosso Conselho Federal de Medicina, o feto anencéfalo é considerado um natimorto cerebral. Logo, não se trata de aborto, por não haver feto viável. Mais ainda, afirmou Ayres Brito: se os homens engravidassem, essa questão já estaria resolvida há muitos anos!

Foi importante absorver as lições que embasaram o voto do relator - ministro Marco Aurélio - ao elencar, entre outros, princípios que devem ser caríssimos à nação brasileira como laicidade do Estado, direitos reprodutivos e sexuais, autonomia das mulheres, não submeter ninguém (as mulheres no caso) a tratamento indigno ou a tortura. Verifica-se que o julgamento da ação foi muito além do foco central que a originou. No Brasil ainda é pouco difundido o conceito de laicidade do Estado: respeitam-se todas as religiões e mesmo quem não possui nenhuma. Cada uma pode manifestar-se sobre qualquer questão que diga respeito aos cidadãos(ãs), mas nenhuma delas deve interferir sobre questões que dizem respeito ao Estado. Nesse sentido, questões do Direito são públicas e questões de fé são privadas.

Em relação à autonomia das mulheres, deverá ficar claro que a decisão do STF não obriga as mulheres a anteciparem o parto em casos de anencefalia. Elas deverão receber todas as informações relativas ao diagnóstico e prognóstico fetal, assim como eventuais riscos para a saúde da gestante. O apoio psicológico será muito importante. A partir disso, cada mulher decidirá se quer manter a gravidez e, consequentemente, ser seguida em unidade obstétrica competente ou, ao contrário, interrompê-la. Naqueles casos em que a mulher se decidir pela interrupção, será seguido um protocolo de atendimento que está em fase final de elaboração na Área Técnica da Saúde da Mulher do Ministério da Saúde e orientará os profissionais de saúde na atenção ao abortamento em casos de anencefalia, conforme a norma técnica do ministério "Atenção Humanizada ao Abortamento" (2011), nos casos previstos em lei. Na verdade já há muitos precedentes de atendimento às mulheres nessa condição, pois nos últimos 23 anos os juízes de primeira instância concederam, caso a caso, alvarás judiciais e as mulheres foram então atendidas sem que se tenha notícias de dificuldades na prestação desse serviço. Não haverá, portanto, sobrecarga no Serviço Único de Saúde (SUS).

As causas dessa grave anomalia congênita são geográficas, sazonais, genéticas e nutricionais. Sobre as três primeiras não podemos ainda interferir. Entretanto, desde 1973 sabemos que a deficiência de ácido fólico (vitamina B9) é responsável por aproximadamente 50% dos casos de anencefalia. Por essa razão o Ministério da Saúde tem uma política pública que consiste em acrescentar ácido fólico às farinhas e com isso contribuir para a minimização da ocorrência e recorrência da anencefalia. Além disso, é ensinado aos médicos obstetras prescreverem ácido fólico na dose de 4 mg pelo menos um mês antes da gestação e nos primeiros dois meses da gravidez. Esse é um medicamento barato e disponível no SUS. E em relação à precisão e disponibilidade de diagnóstico? O diagnóstico é 100% seguro com uma única ultrassonografia a partir de 12 semanas de gravidez. Dizia com razão o saudoso professor José Aristodemo Pinotti que há dois diagnósticos ultrassonográficos em obstetrícia que não têm erro: óbito fetal e anencefalia. Qualquer serviço público ou privado está habilitado a fazê-lo.  

THOMAZ GOLLOP É MÉDICO OBSTETRA, ESPECIALISTA EM MEDICINA FETAL

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