A reforma agrária bifocal

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Por José de Souza Martins
Atualização:

Se o número de entidades que falam em nome da demanda popular por reforma agrária passar das 89 recentemente listadas por pesquisadora da Unesp, provavelmente não haverá trabalhadores rurais sem terra em número suficiente para tanta organização política falando e pleiteando em nome deles. Estamos em face de um curioso fenômeno histórico e político, raro, senão único, na história das lutas agrárias que acompanharam a crise do antigo regime e o nascimento e expansão do capitalismo nos últimos dois séculos. É o da lentidão e da demora na suposta desagregação da velha ordem latifundista e na superação de suas sobrevivências, entre nós. Porque reforma agrária é isso: a remoção e superação dos arcaísmos que na tradição fundiária travam o desenvolvimento da economia moderna. Ou, então, nosso impasse agrário é de outra natureza, de mera disputa de interesses partidários, o que se pode suspeitar com base na proliferação de agentes de reivindicação, sem a coerência ideológica que nos diga que estamos, de fato, em face de um impasse histórico. Não é a história que está em jogo e sim o poder.As lutas agrárias têm sido expressões autodefensivas e conservadoras das vítimas da desagregação do velho regime e de suas injustiças sociais. Tornaram-se uma força involuntariamente auxiliar do surgimento e disseminação de uma nova ordem econômica, social e política baseada no lucro (e não na renda fundiária), na igualdade jurídica de seus membros (e não na desigualdade de nascimento das pessoas) e na democracia representativa (e não na dominação patrimonial e pessoal). As lutas agrárias, ainda que motivadas pela resistência às iniquidades de uma ordem social adventícia, baseada na coisa e não na pessoa, de algum modo têm contribuído para aperfeiçoar essa mesma ordem, nela introduzindo, como observou E. P. Thompson, em relação à sociedade inglesa, um pressuposto moral regulador e humanizador da racionalidade da produção e do lucro. T. H. Marshall, o introdutor da sociologia na Universidade de Cambridge, fez estudos pioneiros sobre o mesmo tema, constatando que foram esses setores historicamente retrógrados da sociedade contemporânea que, sem expressamente pretendê-lo, asseguraram o nascimento dos direitos sociais, civilizando o que parecia caminhar para a incivilidade da coisificação plena e absoluta do ser humano. Esse desencontro profundo entre a motivação imediata e a ação dos movim, eentos sociais, de um lado seus resultados históricos, de outro, tem sido característico das lutas sociais dos pobres na sociedade contemporânea, mesmo quando já não esteja em jogo a demolição de uma ordem social e política pretérita. Nem por isso esses movimentos deixam de ter uma indiscutível importância histórica na faxina que promovem, em nome de valores da tradição conservadora, nos resíduos de arcaísmos que tolhem o desenvolvimento econômico e social.No entanto, também eles se perdem na contradição que os move e desfigura. Uma coisa é o elenco de suas modestas demandas materiais, outra coisa é o que com elas fazem os grupos de mediação interpretativa que as traduzem em política partidária e política de Estado. O sem-terra de referência do Ministério de Desenvolvimento Agrário e do Incra, como o do próprio MST, é irreal e mero instrumento de demandas completamente estranhas às dos que carecem de terra para trabalhar e de trabalho para sobreviver. Sem dúvida, pode haver algum grau de coincidência entre o que precisam uns e o que querem outros, aqueles que tutelam a formatação política das carências sociais. Mas pode haver distanciamentos e rupturas. Nesse plano, a multiplicação do número de organizações que falam em nome dos que poderiam ser beneficiados pela reforma agrária, e a ideologização tanto do MST quanto da Pastoral da Terra, nos indicam uma crise nos indevidamente chamados movimentos sociais. A crise se enuncia na palavra do agente de pastoral da terra que, entrevistado por este jornal, define a reforma agrária do governo do PT, de cuja ascensão a CPT tem sido uma das responsáveis, como reforma agrária cínica. O padre que emitiu esse juízo tem suas ponderáveis razões. Mas não sei que outra palavra empregar para definir a conduta partidária dos que, estando em desacordo com a política agrária de Lula e do PT, ainda assim os consideram os únicos capazes de realizar as aspirações dos pobres da terra quando eles próprios estão dizendo exatamente o contrário. Se o regime militar pensou a reforma agrária como instrumento do Estado para acalmar os nervos dos trabalhadores rurais, é evidente que o governo Lula vai na direção oposta, mas não necessariamente melhor. Desde o início do primeiro mandato ele considera a reforma agrária um recurso tópico para amenizar a pobreza rural e urbana, um modo de aplacar o apetite dos famintos. É o que se vê agora na extensão do Bolsa-Família aos residentes dos acampamentos de pressão do MST, e de outras entidades, em favor de mais desapropriações e mais assentamentos. Reforma agrária, aliás, em declínio notório no governo petista, como acusam e confirmam com dados MST e CPT. Com essa medida, o Ministério do Desenvolvimento Social anexa os sem-terra aos moradores de rua e aos remanescentes de quilombos. Reconceitua-os como sem destino, em exata oposição à ideologia, tanto do MST quanto da CPT, de que os desvalidos da terra são vítimas de uma injustiça social histórica. Como os proletários de Lenin, seriam também eles portadores de uma alternativa social e política que os faria agentes privilegiados da transformação social. Sujeitos do futuro e não do passado. Um governo que, no agrário, optou em termos absolutos pelo heroísmo do agronegócio não poderia deixar de fazê-lo em face de uma servil luta pela reforma agrária, alienada e incapaz de reconhecer-se na possibilidade do agronegócio alternativo e popular, fundado no capital social dos que, privados de terra, não foram privados de um saber ancestral criativo e produtivo. *Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Autor, entre outros livros, de A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto, 2008)

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