A revolta dos intrusos

Economicismo cego arrocha leis de imigração na União Européia. Só que o continente ainda vai precisar muito dos imigrantes

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Por Laura Greenalgh
Atualização:

Numa cerimônia em São Paulo pelos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, dias atrás, o presidente Lula revelou sentir o "vento frio da xenofobia". Embora muito longe de ser uma manifestação atmosférica, a fala presidencial tem a ver com o clima de perplexidade provocado por um conjunto de políticas migratórias aprovado recentemente pela União Européia (UE). Lula tratou do preconceito contra o imigrante, esmiuçando um recado endereçado ao Norte, mas de forte apelo local. Disse que não adianta impedir os pobres de circular, mas, sim, ajudar os países pobres a enfrentarem seus problemas. E tascou o etanol como solução para os males nacionais. O pacote de normas aprovado em Bruxelas alcança 27 países. Foi uma vitória da direita no Parlamento Europeu. Continuará sendo uma vitória dos conservadores, como se viu essa semana, quando o Senado italiano aprovou leis que facilitam a prisão e a expulsão de imigrantes, além de aumentar em um terço a pena aos ilegais. Na Espanha, trava-se um debate acirrado entre os que apóiam e os que desaprovam a decisão do país em não seguir as diretrizes da UE . E manifestações de rua tomam praças na Europa. Certamente o brasileiro Luciano Widomski, 28 anos, não imaginava as pressões políticas que rondavam seu futuro quando decidiu reclamar do preço de um sanduíche de presunto para um ambulante asiático, "dono" de uma barraca de papelão no centro Madri. Aconteceu na madrugada da última terça-feira. Acompanhado de dois colegas, um checo e um português, Luciano reclamou com o vendedor de sanduíches. Sem conseguir abatimento, saiu correndo pela Calle Fuencarral com o pequeno pacote em papel-alumínio nas mãos. Foi capturado por um grupo de olhos puxados (os suspeitos são quatro vietnamitas e um sul-coreano). Sua inadimplência foi abatida a pauladas e uma facada nas costas. Luciano morreu numa tragédia em que todos - ele próprio, os colegas, o vendedor e os agressores - estão na mesma condição. São sin papeles, os ilegais, aqueles que chegaram para roubar postos de trabalho. Luciano era uma ameaça à prosperidade européia, embora, dizem os que o conheceram, mal sobrava para comer o que faturava fazendo tatuagens. Xenofobia é território de estudo do peruano Danilo Martuccelli, professor de sociologia na Universidade Lille 3, na França. Para esse tema dedicou não só teses acadêmicas, mas um livro (Racisme et Xenophobie en Europe, ed. La Découverte). Na entrevista que se segue, o professor analisa o impacto da legislação da UE sobre os países membros, ao mesmo tempo que tenta explicar o endurecimento legal, de um lado, e as perspectivas de milhões que vivem em situação de vulnerabilidade e incerteza, de outro. (Só de brasileiros, são 2,7 milhões os que deixaram o País). Fala dos medos sociais que capturam o imigrante e fazem sua expiação. Ataca o economicismo que cega parlamentos e governos na busca de soluções. E chama atenção para o aumento de mulheres deixando seus países de origem: "Emigrar já não é mais um projeto masculino". Danilo Martuccelli concedeu esta entrevista na quarta-feira, de sua casa em Lille. Viajou ao Brasil no fim de semana para participar, amanhã, do seminário internacional Repensando a Democracia na América Latina, a convite do Instituto Fernando Henrique (i-FHC) e do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. Com o colega Bernardo Sorj, professor da UFRJ, assina o livro Democracia e Coesão Social na América Latina, que está sendo lançado pela editora Record. O endurecimento das leis de imigração na UE, constrangimentos sofridos por brasileiros em aeroportos, a morte violenta de um jovem do Sul do País numa rua de Madri. Enfim, o "vento frio da xenofobia" está mesmo soprando no continente europeu, como diz o presidente Lula? O que se viu nos últimos anos e o que se vê neste momento, com essas leis, é que a gestão de imigração no continente europeu obedece a dois critérios. Primeiro: o imigrante ameaça a segurança interna, portanto, é assunto da polícia. Segundo: querem ver a imigração exclusivamente sob a ótica econômica, como forma de se garantir ingresso de mão-de-obra, suprindo dificuldades demográficas. Essas duas visões, extremamente redutoras, não incorporam as dimensões social, cultural e humana da imigração. Ao contrário, transformam o imigrante no bode expiatório dos medos sociais. Que medos são estes? Vários. Mas o primeiro deles, a meu ver, tem índole demográfica. Em 1900, a Europa reunia aproximadamente 20% da população do planeta. Hoje tem 11%. Em 2050 terá 4%. Parece evidente que nos próximos anos a região terá de passar por algumas ondas migratórias. Os incentivos à natalidade não estão dando resultado? Em países onde se harmonizou a vida profissional das mulheres com as demandas do trabalho doméstico e familiar, os incentivos tiveram resposta. São lugares com taxas de natalidade aceitáveis. É o que se observa hoje na França e em países escandinavos. Mas nos países em que se desestimulou o trabalho feminino fora de casa encontram-se taxas de natalidade particularmente baixas. É o que se vê pelo Leste Europeu e em países da Europa latina, como Portugal e Espanha. Na Grécia, também. Nesses lugares, encontra-se a "greve do ventre", ou seja, as mulheres evitam ter filhos para desenvolver alguma atividade remunerada. Do ponto de vista demográfico, a imigração é necessária na Europa? É o que dizem todos os informes do Parlamento Europeu. Sustentam a necessidade da imigração para os anos vindouros. Que outros medos compõem a expiação do imigrante? Durante muito tempo a Europa se baseou num modelo de desenvolvimento que buscava, ao mesmo tempo, a eficácia de mercado e a regulação do Estado sobre a economia. Esse modelo variou de país para país, mas, essencialmente, dependia de algo chamado "coesão social". O que se viu nos últimos anos? A coesão européia foi tremendamente desestabilizada pela globalização no mundo do trabalho. Assistimos a um crescente empobrecimento das classes médias e o surgimento de vulnerabilidades nos setores populares. Isso dá origem a uma ansiedade que acaba por traduzir-se em intolerância aos de fora. Um outro medo se articula em torno da idéia de nação. Até pela configuração da UE, as nações européias sentem-se ameaçadas. Mas por quem? Pelo quê? Por um projeto europeu e por nacionalismos que estão pipocando. A desestabilização vem daí: uma nação, seja ela alemã, francesa ou espanhola, tem que dar lugar a uma cidadania européia, ao mesmo tempo em que lida com regionalismos reativados. Eis por que o imigrante transformou-se num ponto focal da política européia. Em que medida as tensões internas da UE, como a não-aprovação de uma Constituição européia ou o "não" irlandês ao Tratado de Lisboa, complicam o debate? Hoje a UE é um projeto cercado de dificuldades. Ainda se discute que âmbitos da vida nacional devem permanecer fora do espectro político de Bruxelas. É uma dúvida que persiste. Talvez mais esclarecedor seria perguntar por que se iniciou a construção européia nos anos 50. O objetivo primordial foi o de evitar guerras entre os Estados-Nações. As guerras, como sabemos, foram um flagelo de alto custo humano no continente. Acontece que depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, e das transformações na URSS, em 1990, esse objetivo foi se debilitando. Tanto é verdade que as gerações nascidas dentro do espaço político europeu já não têm memória da guerra. Hoje muitos jovens não sabem mais por que se deve persistir na construção européia, senão por razões estritamente econômicas. E o economicismo predomina. O caso irlandês é exemplar. A Irlanda, como Espanha, Portugal ou Grécia, se beneficiou muito da UE em termos econômicos. Porém, quando um país participa da construção européia apenas do ponto de vista econômico, sem aproximações culturais e políticas, o euroceticismo se incrementa na sua população. Qual é o projeto político da UE? Que papel a Europa evoca a si mesma? Existe um desacordo fundamental em torno do que deve ser o futuro da Europa, fora as divergências entre federalistas e integracionistas, e tudo isso provoca uma crise no imaginário europeu. A UE não tem capacidade de fazer uma política internacional ofensiva, como os EUA. Quando intervém numa questão internacional ela o faz na defesa de certos princípios universais que lhe são caros. De certa forma, instrumentaliza o direito internacional como forma de exibir uma política de potência, já que militarmente é incapaz disso. A rigor, o que ela faz é tentar proteger seus habitantes por meio de acordos com a OMC e outras instituições desse porte, diante da total incapacidade de propor uma política internacional autônoma e, sobretudo, unitária. Um exemplo dessa incapacidade. Não há melhor exemplo do que a crise da ex-Iugoslávia, quando a UE, construída sobre a convicção de que nunca mais se permitiriam campos de horror na região, permitiu que eles existissem a uma hora e meia de vôo de Berlim ou de Paris. Hoje milhares de brasileiros estão ao alcance das sanções da nova legislação européia. Voltando aos anos 80, nossa década perdida, veremos que o fluxo migratório brasileiro deu um salto naquele período e no início dos anos 90. Só que no período subseqüente, a economia brasileira ganhou estabilidade e hoje as perspectivas são boas para o País. Por que, então, as pessoas continuam saindo? Há pelo menos três razões fundamentais para emigrar, sem querer simplificar a reposta. A primeira, e mais evidente, é a dificuldade econômica no país de origem. Porém os que saem não são necessariamente os mais pobres, e sim os mais frustrados. A segunda razão é a perseguição política. Sobretudo na África subsaariana, muitos deixam o país de origem tocados por ditaduras. Desgraçadamente, os refugiados ainda constituem um contingente imenso. A terceira razão tem a ver com o fato de que o mundo do trabalho tornou-se altamente competitivo. Profissionais especializados, como arquitetos, designers, gente da área de finanças, defrontam-se com um mercado de oportunidades atrativo e móvel. Com os investimentos sucessivos em educação nos últimos anos e com esse mercado global aberto para especialistas, encontramos a explicação de por que as classes médias latino-americanas emigram. E há, por fim, uma quarta razão: a imigração continua sendo uma aventura pessoal. O senhor diz que não são os mais pobres que emigram, mas os mais frustrados. Qual é a diferença? Os mais frustrados é que saem. Aqueles que, diante de uma péssima distribuição de riquezas e da falta de oportunidades, se desencantam. A desigualdade é um aliciante muito forte. Agora, se me permite, quero ressaltar um outro fenômeno: durante muito tempo a emigração foi um projeto essencialmente masculino. Agora, e cada vez mais, são as mulheres que emigram, levando na bagagem um projeto pessoal. Elas já não saem de seus países para encontrar o cônjuge. Partem por conta própria. Há as solteiras, dispostas a uma nova vida. E há as mulheres mães que partem em busca de oportunidades de trabalho, para gerar remessas que mandam ao país de origem, ajudando a criar os filhos. Esse fenômeno merece nossa atenção. Repassando a história dos Estados Unidos, concluiremos que a imigração foi um fenômeno coroado de êxito. Tanto que, apesar da insegurança na fronteira com o México, hoje os imigrantes constituem uma força política respeitável, disputada pelos candidatos à Casa Branca. Os imigrantes sempre foram um ponto de pressão na política americana. Os irlandeses e os italianos influenciaram no passado. Hoje são os hispânicos. Nesse país de 300 milhões de habitantes, a imigração tornou-se parte do imaginário da nação, o que não ocorre na Europa. Porém, notam-se diferenças entre os imigrantes nos EUA, relacionadas à origem dessas pessoas. Em outros termos, o modelo de ascensão social americano funcionou muito bem para uns e muito mal para outros. E ainda funciona de maneira medíocre para a imigração latino-americana. Daí encontrarmos uma crescente organização política no seio desse segmento. O que se nota no Brasil é muita gente nos consulados fazendo um esforço tremendo para juntar papéis, provar ascendência européia, e, dessa forma, conseguir dupla cidadania. Há uma febre pelo passaporte europeu. Como se explica isso? Reforça o que eu lhe dizia: hoje não é o indigente, o pobre do campo que emigra, mas o indivíduo urbano, com recursos para sair. Esse indivíduo tende a buscar qualquer vínculo que seja com um determinado país. Assim se organizam as cadeias migratórias. Nos últimos 15 anos pudemos ver como se constituiu a onda migratória dos equatorianos que afluíram para a Espanha, um fluxo muito significativo, feito de classes médias, setores populares e urbanos. Mas o antecedente familiar sempre foi um dado importante. Veja meu caso: sou um peruano descendente de italianos, moro na França, tenho passaporte europeu, mas sempre penso na Itália como um país para o qual cogito ir num dado momento. Ainda que não vá, há essa tendência de escolha. Há denúncias de que hoje, em vários pontos da Europa, imigrantes são "selecionados" de acordo com traços étnicos e raciais. Quer dizer, a aparência tem a ver com o resultado da empreitada? Durante muito tempo políticas nacionais de imigração deixaram-se influenciar por razões fenotípicas e raciais. Um avanço democrático dos últimos anos foi o de obrigar os Estados-Nações a abandonarem esse tipo de seleção de pessoas. Mas, considerando os fluxos migratórios atuais, com africanos, latinos e asiáticos buscando seus destinos, é difícil afirmar que a questão etno-racial foi definitivamente posta de lado. Uma coisa são os princípios, outra coisa é a realidade. No patamar dos princípios, vivemos dentro de um espaço democrático que não permite a seleção por critérios étnicos e raciais. No chão da realidade social, certos grupos ainda são mais favorecidos do que outros. Existe uma ideologia racista no continente europeu? Se ligo o barômetro, vejo que essa ideologia pressiona apenas uma pequena parcela dos europeus. Gente de extrema direita. Você pode perguntar: existe um racismo popular difundido na Europa? Infelizmente, sim. O racismo popular é uma mescla de coisas. Tem o racismo biológico, do tipo "sou melhor indivíduo que o outro"; o racismo de caráter cultural, difundindo que o diferente é impossível de ser assimilado; e o racismo por competição econômica, "não quero que o outro venha porque vai tirar meu lugar". As dificuldades de integração da Turquia à UE estão ensinando alguma coisa à Europa? Há dois tipos de visão. Para a opinião pública alemã ou espanhola, a integração da Turquia é altamente favorável. Já para os franceses, é um movimento particularmente hostil. Na minha opinião, essa integração será crucial até para a transformação do projeto da UE. Passa pela incorporação de um país de tradição laica, mas com grande parte de população praticando a religião muçulmana. Por trás ou não da incorporação, o que se está jogando é o vínculo que os europeus querem estabelecer com o Islã. Os europeus, além de se defrontar com o medo da islamização, são criticados pela secularização da sociedade, como vem fazendo o papa Bento XVI. A Europa é a zona mais secularizada do planeta. Até mesmo entre os crentes a prática religiosa é muito leve. No caso dos imigrantes seguidores do islamismo, é preciso notar um fenômeno interessante. Eles chegam com uma prática religiosa forte, mas, no momento em que se instalam no mundo europeu, essa prática arrefece. Passam por uma rápida secularização. Assim, a reativação identitária do Islã só ocorre em uma pequena minoria. O problema é que essa minoria é fundamentalista e acaba por gerar esse temor ao Islã. E os preconceitos?Na imprensa espanhola lê-se que as brasileiras desembarcam em Madri para viver como prostitutas. Os imigrantes do Leste Europeu são identificados com a máfia. Os africanos, com gente violenta. Preconceitos sempre existiram. E existirão sempre. São como uma regra universal da história humana, segundo a qual um grupo social se valoriza às custas de rebaixar o outro. Só que, hoje, além de se propagar com incrível rapidez, os preconceitos estão mais fortes. Observe o seguinte: nas periferias de muitas cidades européias, onde existe uma coabitação real de imigrantes e europeus, estouram conflitos interétnicos e de competição econômica muitas vezes violentos. Mas os estereótipos são menos fortes, porque existe coabitação. Um vê o outro. Já os estereótipos que se propagam pelos veículos de comunicação de massa, sem contato com a realidade, tendem a gerar preconceitos mais nocivos e perigosos. Como combatê-los? A única forma é fazer com que as coisas funcionem, é melhorar a situação do emprego, da habitação, saúde, educação, integração cultural. Posso explicar a importância da coabitação com um exemplo meio estranho. Há homens que são misóginos, mas, a despeito de sua misoginia, casam-se com mulheres. Não fosse assim, a espécie humana já teria desaparecido. Mas isso prova que o preconceito não necessariamente evita a relação com o outro.

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