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A viagem da transição

Documento inédito revela detalhes da visita a chefes de Estado feita por Tancredo Neves em 1985

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Por Redação
Atualização:

A velha agenda ficou entre os guardados do embaixador e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero por um quarto de século. Nela, o diplomata registrou, em letra de mão caprichada, um capítulo conturbado da história brasileira.

 

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No dia 23 de janeiro de 1985, Tancredo Neves, recém-eleito presidente, partiu em avião de carreira do Aeroporto do Galeão para o exterior. Com ele, uma discreta comitiva, integrada, entre outros, por Ricupero, o embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, a primeira-dama, d. Risoleta, e seu neto, Aécio Neves. A ditadura militar agonizava, mas elementos da linha-dura do regime - que o general Ernesto Geisel chamara de "sinceros, porém radicais" - ainda resistiam à Nova República.

 

"A viagem tinha o sentido de uma sagração para desestimular qualquer tipo de golpe", lembra Ricupero. O périplo de 15 dias viria a ser, nas palavras do ex-chanceler Celso Lafer, o "momento presidencial de Tancredo", no qual se pode vislumbrar o que teria sido a sua presidência.

 

O 'Aliás' traz, com exclusividade, trechos de Diário de Bordo: A Viagem Presidencial de Tancredo (Imprensa Oficial), que Ricupero lança este mês, no centenário do político mineiro. Entre eles, a inusitada conversa no Vaticano com um assessor do Papa, indícios da doença nos EUA, pequenas gafes do recém-eleito e o passo decisivo rumo à aproximação do Brasil com a Argentina.

 

IVAN MARSIGLIA

 

 

SURPRESA NA SANTA SÉ

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Cumprimos esta manhã o programa no Vaticano. O único aspecto inesperado foi a longa duração da audiência a sós com o papa, das 11h32 às 12h15, bem mais do que os 15 minutos previstos. (...) Fomos, em seguida, recebidos pelo cardeal Casaroli, o secretário de Estado, homem miúdo, de ar inteligente.

 

O presidente eleito adotou, no início da conversa, temas e tons que naturalmente imaginara que seriam do agrado de um cardeal idoso, dos mais poderosos da Cúria romana: "Eminência, viemos aqui, minha mulher, minha comitiva e eu, trazer ao Santo Padre a comovida expressão dos sentimentos mais sinceros da devoção e da filial obediência do povo brasileiro. Nossa população é muito sofrida e ainda numerosos brasileiros vivem em estado de lamentável pobreza (...). São os atributos de fervorosa fé católica e de viva religiosidade que explicam a resignação com que a população brasileira suporta a adversidade e o sofrimento".

 

O velho cardeal secretário de Estado ouviu tudo com atenção e, na mesma nota de unção e formalismo, replicou usando palavras parecidas, mas se encaminhando a uma conclusão bem diferente: "Senhor presidente, tenho a certeza de que o Santo Padre terá acolhido com grande alegria esse fervoroso testemunho (...). Mas é preciso nunca esquecer que a fé profunda, a religiosidade são sempre admiráveis, mas não bastam. É necessário igualmente agir para mudar a situação, para melhorar as condições de vida do povo, não só resignar-se. É preciso realizar a reforma agrária e as demais reformas sociais aconselháveis."

 

Senti que dr. Tancredo não esperava esse tipo de resposta.

 

MITTERRAND EM BIARRITZ

 

À noite não saí e, no hotel, Paulo Tarso me contou que a visita a Mitterrand correu bem. (...) O presidente francês teria expressado sua preocupação com a possibilidade de um desenlace sangrento no Chile e seu interesse numa solução negociada na América Central (...)

 

Tancredo teria dito que o encontro com Mitterrand representava um dia importante em sua vida. Sempre com muita chuva, o grupo retornou a Roma após 1 da madrugada.

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EUFEMISMOS LUSITANOS

 

Às 20h45 saímos para o Palácio Nacional de Sintra, onde o primeiro-ministro ofereceu um jantar para cem pessoas dispostas em várias mesas (...) À sobremesa, Mário Soares embarcou num longo improviso sobre o reencontro do Brasil e de Portugal na democracia.

 

Carregou um pouco nas tintas, insistindo em evocar, de maneira incisiva, em relação ao Brasil e à América Latina, as "ditaduras militares e retrógradas" e creio, em certo momento, "sanguinárias" (...)

 

Tancredo preferiu também lançar-se a um improviso de extrema fluência, muito bem torneado (...) Na substância, deixou sem comentário todos ou quase todos os conceitos levantados por Mário Soares, exceto o tema da luta pela democracia, que feriu em nota mais moderada e tradicional (refere-se aos regimes "autoritários", não às ditaduras; não fala em repressão, vítimas ou mártires, mas só em "esforços e sacrifícios"; a ideia básica é que o bravo exemplo português inspirou a luta dos políticos no Brasil) (...)

 

Embalado pelo ritmo embriagador da cascata vertiginosa de palavras, Tancredo deu duas escorregadelas. A primeira foi dizer que, se os portugueses consolidaram a democracia após 1974, por que não o conseguiríamos nós, povo "mais jovem, de mais fibra, mais dinâmico?" Na segunda, Tancredo evoca os quatro impérios portugueses: o metropolitano, o brasileiro, o asiático perdido nas brumas do tempo e o africano, "que lhe foi usurpado".

 

Murmúrios de aprovação nas mesas, mas também o receio de que exagerara na dose.

 

MINUETO EM MADRI

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Paulo Tarso contou-nos que o encontro com Felipe González fora, até aqui, o ponto alto da viagem. O primeiro-ministro espanhol os impressionou pela qualidade política e intelectual e também pela extrema naturalidade, perto da qual Mitterrand teria parecido um tanto paternalista (...) Diz Paulo que, ao contrário de Portugal, onde o presidente Ramalho Eanes e o primeiro-ministro Mário Soares se hostilizam, em Madri o relacionamento do rei e de González é de harmoniosa complementação.

 

O rei suscitava às vezes temas mais espinhosos (o enorme desequilíbrio no comércio bilateral com o Brasil, por exemplo), apenas para dar ao ministro a oportunidade de elegantemente descartá-los, alegando não querer incomodar o presidente eleito, mas sem deixar de registrar a mensagem (...)

 

No jantar com o rei e a rainha, ficaram todos encantados com a simplicidade do casal real, cujas filhas serviram os salgadinhos e o café.

 

MISTÉRIO EM WASHINGTON

 

Seguimos viagem para Washington no avião oficial que serve ao vice-presidente norte-americano, na época George Bush pai. Fiquei na cabine principal, ao lado de Paulo Tarso e Aécio, em frente de Tancredo, sentado numa mesa, tendo, do outro lado, Motley (Tony Motley, nascido no Rio de Janeiro, que fala português fluente e fora embaixador dos EUA no Brasil) e nosso embaixador em Washington, Sérgio Corrêa da Costa.

 

Pude observar o presidente eleito, que se refugiou numa leitura absorvente, primeiro do Washington Post (como a imensa maioria dos brasileiros de sua geração, o dr. Tancredo se sentia muito mais à vontade com o francês do que o inglês; lia inglês com dificuldade) (...)

 

Felizmente, logo veio alguém em seu socorro, trazendo-lhe a sinopse de notícias do Brasil, que leu e releu como quem interpreta um texto bíblico - confirmando que ou estava muito cansado da viagem ou pouco disposto a conversar.

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Só no hotel tivemos a explicação desse comportamento atípico. Na viagem entre Lisboa e Nova York, o dr. Tancredo havia perdido a obturação de um dente, o que lhe dificultava comer ou conversar (...) A embaixada em Washington teve de desencavar um dentista americano que veio várias vezes ao hotel para reparar o estrago. Ao menos essa foi a explicação que nos foi fornecida a nós da comitiva.

Muito mais tarde, após a morte do presidente eleito, o jornalista Carlos Castello Branco escreveu em sua coluna ter ouvido do ministro Leitão de Abreu, então chefe da Casa Civil de Figueiredo, que já em Washington Tancredo passara mal da doença que o haveria de levar, tendo sido necessário chamar um médico ao hotel.

 

Houve, em seguida, versões mais elaboradas, uma delas a de que teria sido necessário até um internamento de emergência num hospital oficial da capital americana para a realização de exames. Permaneci o tempo todo no hotel e nada vi pessoalmente que permita dar crédito a qualquer dessas versões.

 

REAGAN E A DITADURA CHILENA

 

NA CASA BRANCA – Reagan se disse ‘desapontado’ com Pinochet. Tancredo ironizou: no Chile, seria melhor ‘dividir os militares e não a oposição’

 

Quarenta minutos após o breakfast, saímos para a Casa Branca (...) Reagan estava vestido elegantemente de marrom dos pés à cabeça, ostentando boas cores (devido talvez ao rouge e à maquiagem de ator que continua a usar).

 

A conversa teve início com a observação do presidente americano de que ele e Tancredo faziam anos no mesmo mês de fevereiro, o que foi corrigido pelo visitante (cujo aniversário é no dia 4 de março), tendo alguém notado que os signos respectivos eram vizinhos, Aquário e Peixes (...)

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(O secretário de Estado George) Shultz propôs, em seguida, os temas da América Central e do Chile (...) Reagan se confessou desapontado com Pinochet, que ele acreditava ter pretendido sinceramente restabelecer a democracia, mas havia mudado de posição (...)

 

Os americanos explicaram que estão engajados no Chile num esforço de quiet diplomacy. O objetivo é persuadir a oposição moderada a se unir em torno de um programa de ação, mas deixando à margem a esquerda marxista a fim de não antagonizar os militares. Como já havia feito antes, durante o dia, Tancredo reafirmou que, no momento da luta contra a ditadura, a aliança com as esquerdas é inevitável, mas que ela se desfaz, também naturalmente, após a vitória.

 

Fez nesse ponto uma observação pertinente: "Enquanto durar a luta para por fim à ditadura, o aconselhável seria dividir os militares e não a oposição" (como, insinuou, procuravam fazer os americanos).

 

HERMANOS, AHORA SI!

 

Abrindo a conversa, Alfonsín disse que a Argentina recebera com alegria a vitória de Tancredo, a que atribuía significado continental (...) O presidente argentino entregou a Tancredo uma pasta com documentos sobre reuniões de desarmamento, revelando já seu nítido interesse de elevar a prioridade do tratamento da questão na relação bilateral brasileiro-argentina.

 

Com efeito, após a morte de Tancredo e já sob a presidência de Sarney, um dos desenvolvimentos de consequências mais significativas da diplomacia entre os dois vizinhos foi o processo para gerar e consolidar entre eles o mínimo de confiança e transparência em relação a seus respectivos e rivais programas secretos para obter a bomba atômica.

 

Esse esforço frutificaria, em parte sob os governos Sarney e Alfonsín, em parte durante os governos que se seguiram, na decisão do Brasil e da Argentina de desmantelarem seus programas nucleares militares (...). Foi um dos passos mais importantes e positivos da evolução das relações bilaterais entre a Argentina e o Brasil, com implicações construtivas para a paz e o desarmamento no mundo.

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