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'A vida do feto é mesmo sagrada?'

Vanguardista da bioética, Singer prega debate mais incisivo sobre o aborto de anencéfalos

Por Monica Manir
Atualização:

Não se pode dizer que Peter Singer seja o filósofo do abstrato. Longe disso. Sua realidade é o vamos-ver, o aqui-agora, a transformação explícita do mundo. Ética Prática (Martins Fontes), portanto, é um nome de livro que lhe vem a calhar, mas que provocou protestos agudos em certas comunidades acadêmicas, especialmente a alemã. Em Saarbrücken, por exemplo, Singer foi saudado por um coro de assobios e vaias quando tentava explicar em uma palestra por que defendia que pais de recém-nascidos com graves deficiências devem poder decidir, com o médico, se o bebê deve viver ou morrer. "Pelo menos", diz ele, "fez-se o debate a partir de então." Singer vê bons auspícios na discussão de nossa Suprema Corte sobre aborto de feto anencéfalo, embora preferisse um processo mais democrático, na instância do Congresso. Mesmo em questões tão polêmicas quanto a interrupção da gravidez, está ele convencido de que as pessoas podem convencer as outras de suas convicções. É um pouco do que tenta abaixo, nesta entrevista. Irrequieto, este australiano de 62 anos, professor do Centro de Valores Humanos da Universidade de Princeton, também cutuca a placidez diante da pobreza. Seu próximo livro é The Life You Can Save: Acting Now to End World Poverty (Random House), a ser lançado em março nos EUA, que ele, ser humano prático e instigante, anseia publicar "neste seu Brasil de alguns muito ricos e tantos muito pobres". Um suposto caso de bebê anencéfalo, que sobreviveu por quase dois anos, tem sido usado no Brasil com bandeira por aqueles que condenam o aborto. Uma junta médica, aliás, afirmou que essa criança sofria de outro tipo de malformação, rara, chamada merocrania. Um caso fora do comum pode ser exemplar em uma questão como essa? A anencefalia já chegou a ser um dos problemas mais comuns entre os nascidos mortos. Hoje, falando de EUA, as mulheres em sua maioria decidem pelo aborto quando são informadas de que o feto não tem cérebro. Mas tivemos o caso da menina K., nascida em outubro de 1992, no Estado da Virgínia, cujo tronco encefálico funcionava normalmente. A mãe, cristã fundamentalista, insistiu no tratamento, apesar de os médicos do hospital o considerarem inadequado. O Tribunal de Apelação deu razão a ela e a criança sobreviveu por sete anos. K. não tinha consciência de estar viva, embora estivesse. Existem diferentes graus de lesão cerebral e a criança anencéfala pode até viver, mas na verdade não desenvolverá características humanas. Nessa linha de raciocínio, um animal também é um ser vivo. Se aqueles que são contra o aborto entendem que a vida de um animal não é sagrada, por que acreditam que a de um feto anencéfalo o seria? Quando se fala em aborto, é fundamental discutir em que momento começa a vida? Acho que não é uma questão de discutir quando a vida humana começa, mas quando ela ganha suas principais características, como racionalidade, autoconsciência, consciência, autonomia, prazer, dor, que lhe dão valor e tornam errado finalizá-la. Estou seguro de que a vida começa na concepção, mas não acho que a opção pelo aborto seja algo errado. A tecnologia trouxe à tona dilemas bioéticos até então inexistentes? Sim, a tecnologia mudou o debate ético porque podemos saber mais sobre a criança e, portanto, podemos tomar decisões já nos primeiros estágios da gravidez ou logo depois dela, tanto para um lado quanto para o outro. Ficou famoso o caso do bebê Andrew Stinson, em 1976, que nasceu prematuro de 24 semanas. Apesar da firme declaração dos pais de que não queriam "lances de heroísmo", os médicos usaram toda a tecnologia possível para manter a criança viva por quase seis meses, apesar das convulsões periódicas e de sua dificuldade para respirar. Já se sabia que ele jamais teria condições de levar uma vida autônoma. É a idéia de que a vida humana possui um valor único. Como comparar isso com o descaso com que tiramos a vida de cães perdidos, por exemplo? Qual a diferença? Algumas pessoas acreditam, inclusive, que a vida de um bebê é mais preciosa do que a de um adulto. O que pode ocorrer com a mãe que leva adiante uma gravidez de feto anencéfalo? O aborto não deve ser considerado levianamente, se é que alguma mulher considera o aborto dessa forma. Acho que a grávida deve ter opção. Se os médicos asseguram que o bebê é anencéfalo, deve ter o direito de não levar adiante aquela gravidez. Qual o sentido de fazê-lo contra a vontade? Talvez não consiga amar o filho nem cuidar dele. Ao mesmo tempo, se quer ir adiante com essa gestação, e mesmo se quer doar os órgãos do bebê logo após o nascimento, ou seja, enquanto ele ainda respira, isso também deve ser respeitado. Como o senhor encara as críticas de que suas idéias beiram a eugenia? Há uma grande diferença entre a eugenia e um bebê nascido com um problema sério e que será melhor que ele não viva. Eugenia é algo que todos rejeitam, pois afirma que algumas raças são melhores que outras e essas outras não merecem viver porque são "indesejáveis" para a sociedade. A imagem da eugenia foi moldada pelo nazismo. Não acho que devamos aplicar esse termo a uma família que não quer ter um bebê anencéfalo ou que não quer ter crianças com deficiências graves. Lembre-se da talidomida: quando se confirmou a causa dos nascimentos anormais, o fabricante do medicamento teve de pagar indenizações. Se realmente acreditamos que não existe razão para pensar que a vida de uma pessoa deficiente talvez não seja pior do que uma pessoa normal, não veríamos isso como tragédia. As crianças que nasceram sem braços nem pernas teriam sido "simplesmente" diferentes. Quando tratamos de uma questão essencial para famílias, como a do aborto de anencéfalos, o STF é o palco ideal dessa decisão? A Suprema Corte também tem assumido esse tipo de decisão nos EUA. Acho que é uma fase, mas tem efeito negativo no processo político. Deveria ser uma decisão democrática. O Congresso precisaria assumi-la, enquanto à Justiça caberia implementar as leis.

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