A vida em rosa

Caminhos e descaminhos do primeiro processo judicial por pirataria de flores no País

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Por Christian Carvalho da Cruz
Atualização:

.Uma rosa não é uma rosa não é uma rosa não é uma rosa. Não a Versilia Pink. Rosa que é só rosa pode ser a vermelha cansada de guerra, com seu romantismo profundo, convencional e – sorry, românticos – aborrecido. Versilia Pink cheira a desejo, volúpia... e finesse. Luxúria chique para os olhos, digamos assim, com suas pétalas carnudas e um miolo úmido, resplandecente. Se as vermelhas são as rainhas das rosas, Versilia Pink é a outra. É a Ana Bolena de Catarina de Aragão, a marquesa de Santos da imperatriz Leopoldina. Tiro certo em decoração de festas de debutantes, quando papai e mamãe apresentam sua ex-menina aos apetites da sociedade, ou para tirar o ar sonso dos buquês de noivas pouco ousadas, ensina o florista da elite paulistana Vic Meirelles.

 

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Pink – os íntimos já encurtaram seu nome, vejam só – nasceu francesa em 2002, filha da Versilia original, variedade belíssima, mas de recatada cor de pêssego (apesar de batizada com o nome da região da costa toscana, na Itália, onde ficam os libidinosos inferninhos de música eletrônica). Não se sabe ao certo quando chegou ao Brasil, provavelmente contrabandeada na mala de algum produtor voltando da Europa. Hoje, Pink brilha nos tribunais, estrela do primeiro processo judicial por pirataria de flores movido no País. Yes, nós temos legislação pra isso – a Lei de Proteção de Cultivares, de 1997. Ela garante o direito de propriedade aos mortais que manipulam a natureza para inventar plantas jamais vistas.

 

De um lado da disputa está o colombiano Mauricio Torres Martinez, representante da Nirp International, empresa de Cuers, sul da França, que desenvolveu a Pink e exibe em seu catálogo outras 150 rosas patenteadas e cultivadas mediante pagamento de royalties. Do outro lado está Luiz Carlos Frizo, agricultor de Andradas, Minas Gerais, que produz a Pink sem remunerar a Nirp, porque "onde já se viu rosa ter dono, uai". O caso está no fórum da cidade mineira aguardando parecer de um perito em genética botânica do Instituto Agronômico de Campinas. Ele vai comparar o DNA da Pink de Frizo com o da Pink de Martinez. Se os códigos casarem, Frizo perde: fica provado que ele pirateou a rosa, e isso abre caminho para a Nirp cobrar os royalties devidos, cerca de R$ 25 mil. "Não queremos inviabilizar o senhor Frizo economicamente, por isso o valor é baixo, baseado no que ele plantou e não no que ele vendeu: R$ 1 por pé", explica o advogado Celino Bento de Souza, contratado por Martinez. "O objetivo é orientar o mercado sobre a existência e a aplicação da lei e proteger os produtores que pagam os royalties normalmente."

 

A serra entre Andradas e Poços de Caldas, de 1.350 m de altitude, está coalhada de estufas. Começou a se tornar um polo de respeito depois que os produtores perceberam ali as qualidades climáticas deveras apreciadas pelas rosas. De dia, calorico de 28°C. De noite, friozinho de 14°C. Temperaturas amenas, no geral, que garantem o melhor desenvolvimento das bichinhas. Termômetro lá em cima o tempo todo significa ciclo curto de amadurecimento, resultando em botões mirrados, com poucas pétalas. Andradas oferece o contrário. Não é uma Colômbia ou um Equador, os maiores e melhores produtores mundiais justamente por combinar frio e calor na medida certa, mas dá para ótimo gasto. Lá praquelas alturas de Andradas diz que o caso Versilia Pink é embate entre o gringo dotô, de português certinho apesar do sotaque, contra o mineirinho incrédulo de língua enrolada, roseano brabo à la Riobaldo.

 

 

"Em 2006, depois de recebermos do Ministério da Agricultura o certificado de proteção da Pink, propusemos um acordo ao Frizo: pagamento dos royalties em 18 meses. Ele não quis, preferiu empurrar com a barriga, nunca acreditou que estivesse errado", conta Martinez pelo telefone, do Rio de Janeiro, onde passava férias com a família na última semana. "Mas, moço, pagar o quê?", Frizo pergunta, carregado de loção pós-barba, no alpendre de seu sítio em Andradas. A propriedade tem 13 hectares, 90 funcionários, 350 mil pés de oito variedades de rosas (a Pink não passa de 10 mil, garante) e faturamento bruto de R$ 1 milhão por ano, nas contas do proprietário. "Senta, moço, aceita uma cachacinha?", ele continua. "Ói, a Versilia que veio pro Brasil lá atrás, e hoje nem tem mais royalty, era cor de champanha. No canteiro ela virou pink." Sozinha, seu Frizo, assim por mágica?! "Por mutação, uai, o senhor nunca ouviu falar, não?" Não mesmo. "Uma vez fomo em Atibaia (SP) e trouxemo muda de várias espécie. No meio tinha uma Versilia Pink, veio por engano. Dessa muda murtipricamo. Mas é ruim que só vendo, fraquinha, fraquinha. Em dois ano não colhemo nada. As outra tudo em seis mês já podemo vender."

 

Numa coisa Frizo está certo: da Versilia original não se recolhem royalties no Brasil, porque a lei só protege as rosas novas, com no máximo dez anos de comercialização (embora muitos produtores paguem voluntariamente, pois sabem que ela tem dono, a Nirp). Mas obter uma variedade inédita dá um pouco mais de trabalho do que a milagrosa mutação que ele sugere. Acontece por polinização artificial, na qual o pólen de uma rosa macho é pincelado numa rosa fêmea de outra variedade. A Nirp faz 30 mil cruzamentos desse tipo por ano, e deles obtém 450 mil sementes – ou 450 mil variedades inéditas de rosas. Ao final de sete anos, descontadas as miseráveis sacrificadas pelo caminho por serem feias, fracas, malcheirosas, economicamente inviáveis, enfim, sobram de 5 a 15 rosas novinhas, prontas para ganhar o mercado. No Brasil, elas são oferecidas aos produtores por cerca de US$ 0,95 o pé, assistência técnica e transferência tecnológica no pacote. Quem não quer pagar pirateia: desenvolve mudas plantando caules de uma roseira original, simples assim. "É vantajoso o royalty", defende Adriano Van Rooyen, produtor de Holambra (SP) e Andradas, cliente da Nirp e de outras duas empresas do ramo, a alemã Tantau e a francesa Mailand. "Temos certeza da boa qualidade e mercado garantido. Produzimos o que as pessoas querem comprar, não existe desperdício."

 

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Frizo tem outra receita para colher uma rosa de boa cepa, uma Pink caprichada com 35 pétalas, botão de 6 cm de diâmetro que dobra de tamanho em flor aberta e dura 15 dias no vaso, conforme promete o manual da Nirp. "Tem que dar carinho, amor mesmo", recomenda o agricultor que já foi torneiro mecânico, plantador de banana, batata e café antes de estrear no roseiral há oito anos. "Vou falar uma coisa pro senhor, moço... Aceita um queijim de Minas? Porque, ói, esse negócio de rosa envorve fé, energia. Não dianta só jogar adubo e moiá. Nós sabe que a Pink é da Nirp. Vamo rancá tudo elas, não trouxe boa coisa pra nós, não interessa mais", decidiu, olhando triste o roçado.

 

Uma rasteira extra em Pink, essa sofredora pecaminosa que viveu seu auge há três anos. Naqueles tempos ela fulgurava sozinha no mundo das cor de rosa choque e atingia preços de R$ 0,80 o botão no produtor e três vezes mais na floricultura. Hoje, com holofotes judiciais e tudo, a coitada amarga um ostracismo precoce, superada de longe pela embaciada Avant Garde, de um lilás pálido, comportado, quase santo, e pela novíssima Coffe Break, uma lolita inconsequente que chegou arrancando suspiros com sua corzinha indefinida, qualquer coisa entre o marrom e o vermelho alaranjado. Na Cooperativa Veiling Holambra, responsável pela venda de 30% das flores do País, o preço da Pink não passa de R$ 0,65 a unidade. Já a Coffe Break chega fácil a R$ 1,10. E a apagadinha Avant Gard, em voga em festas de casamento, noivados, batizados e similares, bate em R$ 1,60.

 

Pink já não provoca burburinho nos leilões do Veiling, onde as rosas desfilam em carrinhos diante da plateia de compradores. Na sequência estratégica da exibição, as rosas são sempre as primeiras a passar, às 6 da manhã, para atrair a freguesia (e o encerramento fica por conta das orquídeas, igualmente cobiçadas). Mas os compradores de rosas só se atiçam nos lances para as coloridas da moda ou para as vermelhas, eternamente em alta (60% da vendas) por culpa da criatividade masculina, que só conhece três tipos de rosas: vermelha, vermelha e... bem, vermelha.

 

Pobre Pink. Se lhe serve de consolo, seu caso ao menos restará como símbolo da pequena revolução vivenciada pelo setor de rosas no País – incluindo o espinhoso desdobramento da pirataria. Há cinco anos, o que se conhecia aqui? Vermelhas, brancas, cremes e rosas (mas rosa clarinha, pudica, nada a ver com a Pink). A Lei de Proteção de Cultivares, mesmo que tardiamente, possibilitou a chegada de novas variedades estrangeiras e hoje existem mais de 80 delas na praça. Até rosa verde (Green Fashion), cor de abóbora (Sultana) e amarelo marca-texto (Sayonara) tem. É cada nome...

 

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"Esse movimento ampliou o setor de forma admirável", comemora Carlos Godoy, gerente comercial do Veiling. "Não fossem as novidades, ainda estaríamos vendendo rosa por R$ 0,20 o botão e o mercado teria a metade do tamanho que tem hoje." A pirataria é um efeito colateral provocado por gente com visão de curto prazo do negócio, diz Godoy. Explique-se: uma roseira dura cinco anos, depois, exaurida de tanto parir, ela morre. "Na hora da renovar o roseiral, vai se dar bem quem tiver tecnologia, assessoria e plantas de qualidade. O pirata não se bastará sozinho, precisará de ajuda e novas variedades originais para se manter no jogo."

 

Frizo volta ao seu imenso jardim com a certeza que deve chorar. Plantado no canteiro de Pinks assassinadas dias antes pelo trator da precaução, queixa-se às rosas: "Eles têm inveja de nóis. Umas flor tão bonita no campo, e eles não consegue umas assim nem na estufa. Nós quer ir pra frente, mas sempre arguém puxa pra trás. Só quer murtá, murtá. Desse jeito o País não anda, não senhor. Paiaçada sem explicação..."

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