A volta da velha senhora

Gordon Brown, britânico, e Nicolas Sarkozy, francês, apresentaram saídas para a crise e reabilitaram a Europa

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

A velha Europa deixou o asilo (ou seria a tumba?), e isso é maravilhoso. Lembram-se de como os americanos debochavam dela, quando Wall Street era só felicidade e gastança? Europa: um museu de idéias obsoletas, um sarcófago econômico, aquele continente onde as pessoas trabalham menos e gastam muito tempo comendo. E tome húbris! Húbris e cobranças de gratidão. Bastou uma negativa de ajuda militar à invasão do Iraque, em 2003, para o governo Bush e seus sicários midiáticos ressuscitarem a cantilena de que os europeus tinham uma dívida eterna com os EUA, sem os quais teriam sucumbido ao flagelo nazi-fascista. Pura mesquinhez politiqueira. Se tivesse deixado para combater o Eixo dentro de casa, a América teria sofrido muito mais que as 300 mil baixas contabilizadas durante o conflito. Não foi apenas por solidariedade e altruísmo, mas também por uma questão de sobrevivência, que Roosevelt mandou suas tropas à Europa, que, não custa lembrar, perdeu 150 vezes mais vidas na guerra. Foi uma autêntica Blitzkrieg. Falo agora da guerra que jornalistas de direita e extrema-direita, a maioria a soldo do império Murdoch de comunicação, desencadearam, cinco anos atrás, contra alguns países europeus, notadamente a França, incentivando o boicote a produtos franceses, a substituição de expressões consagradas como "french fries" (batatas fritas) por "freedom fries" e "french toasts" (rabanadas) por "freedom toasts", e, numa escalada de ridicularias, a exumação dos restos mortais dos soldados norte-americanos enterrados em cemitérios franceses. Na época, até o Wall Street Journal pré-Murdoch assustou-se com a virulência do que classificou de "jornalismo jingoísta'', comparando a campanha francófoba à sórdida cruzada contra os espanhóis deflagrada pelo magnata da imprensa William Randolph Hearst, o "Cidadão Kane", depois que os EUA afanaram Cuba e as Filipinas da Espanha, no final do século 19. Os templários eurofóbicos continuam, quase todos, na ativa, mas de crista baixa por causa do fracasso do governo Bush, do papelão da dupla McPalin, da implosão do partido Republicano, da desmoralização do mantra reaganômico ("O governo não é a solução; o governo é o problema"). E, pourquoi pas?, da ressurreição da fênix européia. Que ressurgiu das cinzas do velho capitalismo, este, sim, caquético e esclerosado. Pois não é que nasceram, vivem e governam na Europa os dois novos super-heróis do sistema financeiro internacional: Gordon Brown e Nicolas Sarkozy. Foram eles que tiraram da cartola o plano salvador e o modus operandi para restaurar a confiança do mercado, recapitalizando a banca e assegurando sua liquidez, no qual o governo Bush (via Henry Paulson) e o Congresso dos EUA pegaram carona sem pestanejar. Ou seja, sem dar bola para eventuais acusações de "traidores do livre mercado", "estatizantes" e outros pejorativos que tais. O primeiro-ministro britânico, com os préstimos de seu secretário do Tesouro, Alistair Darling, entrou com o principal (o mapa da mina: garantia de empréstimos interbancários, nacionalização parcial dos estabelecimentos financeiros em dificuldade, injeção maciça de fundos de capitalização) e seu colega francês, com a energia para europeizá-lo e globalizá-lo. "Gordon does good", saudou Paul Krugman, em sua coluna do último dia 13. Com o necessário grão de sal, já que a crise continua resistindo até a medicamentos supostamente heterodoxos, o pânico nas bolsas persiste, o consumo se retrai, a bola de neve habitacional se agiganta e uma recessão prolongada se avizinha. Mas é inegável que Gordon gritou "Shazam!" na hora certa, aliviando provisoriamente a tensão, acendendo uma vela no breu. Feito e tanto para quem andava tão por baixo, vergado pela fama de indeciso, embrulhão e padroeiro da "decadência" econômica da Inglaterra, a 20 pontos abaixo do thatcherista David Cameron na preferência do eleitorado para a sucessão de 2010. Da bacia das almas ao Olimpo. Até a segunda semana de outubro, Brown era chamado, não sem motivos, de "Mr. Bean" pela oposição. Depois virou "Flash Gordon". Modestamente, pediu: "Gordon, só Gordon. Nada de Flash, por favor". Sarkozy também já ganhou um apelido ("onipresidente", dado pelo humorístico Le Canard Enchainé) e elogios de um rival, o ex-primeiro-ministro socialista Michel Roncard. Visto em toda parte, não sai do telefone, sempre a conchavar e marcar encontros, transformou-se no motor do socorro europeu, que é o que se podia esperar de um presidente da Comunidade Européia. A crise em Wall Street mal completara 10 dias quando o premier francês arregimentou os 27 países da UE para uma "ação rápida, audaciosa e coordenada". A primeira reunião de cúpula, marcada para 4 de outubro, fracassou, mas a segunda, dia 12, só com países que adotaram o euro (mais a Grã-Bretanha, por conta do plano de Brown & Darling), dobrou até as resistências da alemã Angela Merkel, contrária a estratégias unificadas. Há dias, o marido de Carla Bruni foi a Camp David tentar convencer Bush de que os excessos do livre mercado arruinaram o capitalismo e da importância de periódicas reuniões de cúpula com representantes das maiores economias do mundo para recuperá-lo. Na algibeira, a proposta de um "Bretton Woods" para o século 21. A primeira reunião será em 15 de novembro, em Washington, com a presença adicional do sucessor de Bush, a parte mais interessada no sucesso da resposta global à crise a ser discutida. Há quem resista à idéia de um novo Bretton Woods, a série de conferências que há 64 anos gerou acordos que inocularam o mundo contra uma depressão similar à de 1929, criaram o FMI, o Banco Mundial e regulações paulatinamente descartadas, com os efeitos de sobejo conhecidos. O cérebro econômico por trás de Bretton Woods, John Maynard Keynes, não arrumaria emprego na Wall Street dos anos 80 e 90. Defendia a regulação dos mercados, as políticas de reativação de investimentos e grandes obras públicas. Era pela autonomia das empresas, mas não acreditava na auto-regulação dos mercados, a seu ver, permanentemente sujeitos a disfunções, daí a necessidade de ocasionais intervenções do Estado. Keynes voltou à moda com força. Ah, sim, Keynes, que morreria dois anos depois de Bretton Woods, nasceu em Cambridge. Era inglês. Era europeu.

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