Abismo social e a cíclica relação entre mãe e filha marcam Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso

Segundo romance de Giovana Madalosso escancara herança escravocrata e sexista no Brasil, em meio às relações entre mãe e filha, patroa e empregada. 

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Foto do author Gustavo Queiroz
Por Gustavo Queiroz
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“Estou raptando uma criança”. A mesma tragédia irreversível que abre o romance Suíte Tóquio (Todavia), da curitibana Giovana Madalosso, também anuncia o livro Canção de Ninar (Planeta, 2018), escrito pela franco-marroquina Leila Silmani: “o bebê está morto”. Nos dois casos, a culpada é a babá. Mas na forte narrativa da brasileira, é impossível afirmar que Maju, a empregada, sequestrou a filha de Fernanda, a patroa, sem entender que antes a patroa também sequestrou Maju.

A escritora paranaense Giovana Madalosso, autora de 'Suíte Tóquio' Foto: Rafael Arbex/Estadão

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“Escuto o celular tocando, mas resolvo não atender”. O segundo capítulo do livro é, agora, narrado por Fernanda, a protagonista que ainda não sabe do sequestro da filha. Enquanto Maju tem uma origem simples no interior do Paraná, Fernanda vive em um bairro de classe média alta em São Paulo e ocupa um cargo executivo em uma produtora de televisão. Para dar conta do novo trabalho, a patroa faz uma oferta à babá: três salários mínimos para cuidar de sua filha, Cora, com direito a dois dias de folga por mês - a “visita íntima”.

A partir deste ponto, Suíte Tóquio marca com precisão a contradição entre a vida das babás, chamadas pela autora de “exército branco”, das patroas. A narrativa em primeira pessoa intercala a vida de Maju e de Fernanda. Com trajetórias distintas, fica claro ao leitor qual voz está narrando, mas, ainda que distantes, há uma costura que as une: patroa e empregada projetam na pequena Cora alguma fantasia de liberdade que buscam para si mesmas.

Maju vive na “suíte Tóquio”, um cantinho de um rico apartamento que Fernanda nomeou como eufemismo para o quarto em que a empregada passa a morar. Aliás, "cantinho" é também a palavra que a autora usa para dizer onde a mãe deixou a filha: num cantinho da vida. “E lá nesse cantinho estava eu”, se justifica Maju.

Ao longo da narrativa, Fernanda se envolve em relações extraconjugais. A dificuldade de equalizar a relação profissional da familiar a faz mergulhar cada vez mais no trabalho e ali encontra em uma colega uma liberdade que não percebia na relação com o marido, Cacá. Tudo acontece enquanto acompanha a gravação de uma série documental que mostra animais selvagens como se fossem protagonistas de uma novela.

Na narrativa, Cacá é descrito como um homem resiliente aos problemas da esposa. Como se o sexismo e machismo não estivessem encarnados apenas em um ou outro sujeito, mas de forma estrutural na forma agressiva com que a mulher, enquanto mãe, é cobrada e percebida pelos vizinhos, pelos familiares e pelo grupo de pais da escola.

Fernanda se vê desligada da vida de Cora, até que é confrontada por sua iminente falta. Com a notícia do desaparecimento da filha, a patroa revive as cobranças envolvendo sua maternidade: a mãe precisa saber ser mãe, mas também não pode ser mãe demais. Ao mesmo tempo, Maju vive uma fuga regada de novas descobertas sobre os cuidados parentais. A relação carnal que os animais da série de Fernanda têm com os próprios filhotes vira metáfora para a relação umbilical existente entre mãe e filha que, por intensa e devastadora que é, dói quando se rompe e dói também quando nunca se rompe. “Típica relação mãe e filha. Apesar de tudo, juntas”, escreve.

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Fernanda e Maju têm a mesma idade e, assim como acontece em Canção de Ninar, a babá é contratada para que os patrões tenham mais tempo para o trabalho. Ocorre que a realidade narrada de forma ágil e inteligente por Giovana escancara como as diferenças entre raça, classe, gênero e orientação sexual separam ricos e pobres. Na história, significa dizer que a babá raptar uma criança não é um fato isolado.

Nas histórias da realidade, a ironia vem com força. O livro de Giovana foi lançado poucos meses depois da data em que Miguel Otávio da Silva morreu ao cair do 9º andar de um prédio luxuoso em Recife. Miguel era filho de Mirtes de Souza, empregada doméstica que deixou de estar com o filho para passear com o cachorro dos patrões. Sarí Real, dona da casa, foi acusada de abandono de incapaz com resultado em morte e responde o processo em liberdade. 

As tragédias da vida real e da ficção se misturam com facilidade no livro de Giovana, que usa das marcas da vida de Maju e das descobertas de Fernanda uma forma de dispor das contradições das questões domésticas no Brasil, sem recorrer a moralismos, sempre com um toque de humor. Na percepção de Maju, seria mais fácil, talvez, se os adultos voltassem à infância: “deveríamos todos carregar a vida inteira uma chupeta no bolso, ninguém precisaria de cigarros, nem de calmantes, nem de unhas”, diz na narrativa.

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