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Abusos em nome da decência

A eficácia na investigação de crimes não autoriza submeter

Por Conrado Hübner Mendes
Atualização:

A Polícia Federal prendeu, na última terça-feira, 36 pessoas acusadas de desvio de dinheiro público do Ministério do Turismo. A chamada Operação Voucher, se por um lado merece ser celebrada por enfrentar o que mais parece ser um esquema de corrupção institucionalizada nos corredores de Brasília, vem sendo questionada, como já aconteceu em operações semelhantes, pelos seus modos de agir.

 

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Primeiro, algemas foram usadas em circunstâncias que supostamente não exigiam tal precaução – o que violaria, entre outras normas, uma súmula do Supremo Tribunal Federal que permite o uso de algemas apenas excepcionalmente, como “em caso de resistência e de fundado receio de fuga”.

 

Segundo, fotos tiradas de alguns presos no momento de registro na penitenciária, que os mostravam sem camisa e segurando uma folha de identificação, vazaram para a imprensa.

 

As manifestações de repúdio, por parte de autoridades públicas e da própria presidente, contra o vazamento das fotos (não contra as fotos em si, bom que se diga) relembraram o que está em jogo do ponto de vista jurídico e moral: a eficiência na investigação de crimes, por fundamental que seja, não autoriza submeter os investigados desnecessariamente a atos de humilhação pública, de intimidação física e de degradação de imagem.

 

São atos incompatíveis não só com uma variedade de artigos da Constituição brasileira (como o que protege a dignidade e o que garante o devido processo legal), mas também com a maioria das declarações de direitos civis e políticos, nacionais ou internacionais, adotadas durante a segunda metade do século passado. Tais documentos nos oferecem padrões razoavelmente convergentes de decência política com os quais nossa Constituição se comprometeu e muitos lutam cotidianamente para implementar.

 

Para além desse importante bê-á-bá, contudo, é oportuno levantar algumas questões adicionais. Um desafio perene da filosofia política, de um lado, e do direito público, de outro, é iluminar a fronteira entre o exercício legítimo e o ilegítimo do poder, quer dizer, entre o uso e o abuso do poder. Demarcar tal fronteira permite a crítica e a reação aos atos do segundo tipo, prepara-nos para revidar o abuso através dos canais institucionais e extrainstitucionais que se revelem disponíveis e justificáveis em cada contexto.

 

Abusos de poder podem assumir formas e intensidades variadas, e configuram tipos diversos de delinquência estatal. Um primeiro tipo é o da violência bruta, o da desconsideração explícita, rotineira e destemida da lei. Um segundo é o da violação sistemática da lei, apesar do reconhecimento público de seu valor. Nesse caso, há uma parceria estratégica entre o Estado a lei, que acaba servindo como detalhe decorativo que auxilia o Estado, a despeito da repetida violência, a legitimar-se simbolicamente. Um terceiro é o da aplicação seletiva da lei, do uso de diferentes pesos e medidas conforme o sujeito implicado. 

 

Nesse caso, pessoas de variados estratos socioeconômicos, por exemplo, são tratadas com maior ou menor rigor sem nenhuma justificativa plausível para tal diferença. Aplicar a lei passa a ser um ato de discriminação contra os mais vulneráveis. Um quarto, e paro por aqui, é o da violação episódica e extraordinária da lei, mero acidente de percurso que consegue ser equacionado e punido pelas instituições em vigor.

 

Por mais esquemática que seja essa tipologia e controversa que seja sua aplicação, ela ao menos ajuda a pensar. No Brasil, os abusos de poder não se restringem ao quarto tipo. Reportagens e pesquisas nos dão exemplos constantes de violações dos outros três tipos também. Sabemos pouco, ainda, para classificar a Operação Voucher com precisão. No entanto, mais importante que isso é avaliar, sem desmerecer as conquistas da polícia no combate ao crime organizado, como abusos na sua forma de agir impedem o avanço do nosso frágil Estado de Direito.

 

* CONRADO HÜBNER MENDES É DOUTOR EM FILOSOFIA DO DIREITO PELA UNIVERSIDADE DE EDIMBURGO E DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

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