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Afinal, já estamos deprimidos?

Os responsáveis pela Grande Depressão e pela crise econômica de hoje continuam dirigindo o espetáculo

Por Steve Fraser
Atualização:

Um cartaz pavoroso era exibido um dia desses numa manifestação em Wall Street. Sua mensagem gráfica aconselhava aos cidadãos da rua: "Salte!" Era um lembrete medonho da lenda mais persistente, talvez, sobre a Grande Depressão dos anos 1930: a de que o colapso repentino da economia encheu o céu de corretores de ações pulando de prédios para se suicidar. Na verdade, foram muito poucos os suicidas. Mas o mito captou uma verdade mais profunda. Com exceção da Guerra Civil, nenhum acontecimento da história americana se revelou mais traumático, deixando cicatrizes que ainda carregamos. Nas últimas semanas todos fomos nos acostumando, mesmo que relutantes, a comparar o derretimento financeiro atual com 1929. Vaticínios de que esta crise financeira em breve descambará para um desastre econômico generalizado estão por toda parte. Ainda assim, quase ninguém está disposto a usar a palavra "depressão". Falamos de "desacelaração" ou "recessão", palavras que não fazem justiça ao espectro que ronda o país. Esse tabu persiste, apesar dos sinais aziagos em contrário: uma taxa de desemprego em persistente crescimento; execuções hipotecárias de casas; congelamento do crédito que atinge a todos, dos grandes fabricantes aos consumidores comuns; contração tipo sanfona de empresas - das montadoras de carro às fabricantes de software do Vale do Silício; rápida erosão do valor do dólar nos mercados cambiais globais; e assim por diante. Tudo isso lembra, ao menos nos traços gerais, a crise de liquidez que prenunciou a Grande Depressão. Mas mesmo assim evitamos a palavra, e por motivos perfeitamente compreensíveis. Para começar, existe a séria questão da confiança. Uma economia de mercado não pode funcionar sem ela. Franklin Roosevelt talvez seja mais lembrado por repreender brandamente e tranqüilizar seus concidadãos dizendo que eles não tinham nada a temer além do próprio medo. Roosevelt estava falando para aquela zona intersticial de nossa vida pública em que a psicologia encontra a política econômica. Também hoje é particularmente importante manter ou restaurar a confiança. Uma medida de como as coisas estão ruins é que banqueiros e autoridades, cuja atitude é em geral profissionalmente otimista, têm sido inflexivelmente francos sobre a gravidade da situação. Mas levantar a perspectiva de depressão é ir longe demais. Afinal, como alguém pode ter certeza de para onde estamos caminhando? Vale lembrar que quando Herbert Hoover tentou animar as pessoas dizendo-lhes que "bastava virar a esquina para encontrar a prosperidade", ele ao menos tinha alguma razão para acreditar nisso. Por espantoso que possa parecer hoje, o mercado acionário realmente experimentou uma alta considerável, ainda que temporária, após os dias sombrios de outubro de 1929. Não só isso. Os fundamentos econômicos não mostraram verdadeiros sinais de colapso por quase um ano depois que Wall Street os mostrou; somente após a metade de 1930 o colapso começou a atingir as marcas definidoras de 25% de desemprego, com a importantíssima indústria siderúrgica operando com apenas 10% da capacidade. Não estamos perto disso ainda (ou ao menos esperamos que não). Hoje, a incerteza endêmica age como um inibidor, produzindo um tipo de recém-descoberta humildade entre os sábios de plantão que, não faz muito tempo, rechaçavam a possibilidade de algo como o que estamos presenciando hoje. O mais potente inibidor para a crise de hoje talvez seja, porém, o fato de que a Grande Depressão aconteceu. Isto é, porque a Grande Depressão existiu, é impensável que se permita que ela ocorra de novo hoje. Desde meados do século 19 as depressões foram, se não consideradas inevitáveis, ao menos reconhecidas como parte do ciclo econômico, ocorrendo com sonolenta regularidade a cada 15 ou 20 anos. Ninguém achava que havia muito que se pudesse fazer sobre elas. A expressão mais franca e com certeza mais cruel dessa convicção fatalista foi o conselho do secretário do Tesouro Andrew Mellon ao presidente Hoover sobre como resolver a Depressão. "Liquide o trabalho, liquide as ações, liquide os agricultores, liquide os imóveis", foi a receita de Mellon, segundo as memórias de Hoover. Isso é uma maneira de dizer para não fazer nada: deixe que as coisas se corrijam sozinhas. À medida que a depressão se aprofundava numa calamidade social geral, um sangue-frio como esse tornou-se intolerável. E assim tem sido desde então, mesmo em regimes conservadores, favoráveis ao livre mercado, do último quarto de século. Por último, é irônico que a resposta do New Deal à Grande Depressão confere uma garantia, mesmo para aqueles que, não fosse isso, desprezariam o que o New Deal forjou, de que uma segunda Grande Depressão não pode acontecer. Os "estabilizadores automáticos", como seguro-desemprego, previdência social e até gastos deficitários de inspiração keynesiana, instalados durante os anos Roosevelt, oferecem algum peso contracíclico para impedir uma descida sem fim a um inferno econômico. Ou assim crêem as pessoas. A recusa em usar a palavra "depressão" será um talismã eficaz contra a coisa real? Em breve saberemos. Mas seja qual for sua eficácia psicológica, os tabus não podem substituir uma política pública efetiva. Por enquanto, os sinais não são animadores. Aqueles que trouxeram a primeira Grande Depressão e a própria emergência atual - o establishment financeiro do laisser-faire e os que politicamente o possibilitaram - ainda estão regendo o espetáculo, rascunhando a legislação de resgate, costurando emendas para proteger seus interesses, cavalgando livres da maioria das restrições regulatórias e tratando precariamente da real recessão, seja qual for o nome que se dê a ela: a rapidamente declinante prosperidade dos americanos comuns. Steve Fraser, autor de Wall Street: America?s Dream Palace, é professor visitante na Universidade de Nova York.

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