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Ainda donos da bola?

Para embaixador, EUA dividirão a quadra da diplomacia com muitos países. Inclusive o Brasil

Por Ivan Marsiglia
Atualização:

Meu muro caiu. No caso, a Wall Street de Alan Greenspan e George W. Bush. E, aparentemente, nada será como antes para os Estados Unidos, considerado o principal pólo de poder no mundo desde o fim da Guerra Fria. A comunidade internacional teve que dar as mãos e os anéis para impedir uma catástrofe financeira iniciada bem ali, no quintal do Império. A ponto de, esta semana, o diretor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Kemal Dervis, dizer que clubes exclusivos de países ricos, como o G-8, "não fazem mais sentido". Ou entram países em desenvolvimento na dança ou festa acabada, músicos a pé. Para Gelson Fonseca Jr., ex-representante do Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU) e ex-embaixador no Chile, os EUA continuarão importantes no jogo político internacional, assim como Europa, Rússia, Japão e China - mas terão que dividir a quadra com Brasil, Índia e África do Sul. Considerado pelo ex-chanceler Celso Lafer "o mais instigante e engenhoso estudioso brasileiro das relações internacionais", Fonseca Jr. teve grande influência na política externa brasileira durante o governo tucano, a ponto de línguas afiadas no Itamaraty referirem-se a ele hoje como "o Marco Aurélio Garcia de FHC". Atualmente exercendo a função de cônsul geral em Madri, acaba de lançar O Interesse e a Regra - Ensaios sobre o Multilateralismo, em que discute o novo papel da ONU, definida por ele como "parlamento imperfeito", porém cada vez mais forte como "geradora de padrões de legitimidade". Na entrevista a seguir, o diplomata afirma que a crise financeira e a necessidade de uma nova inserção norte-americana no mundo abrem espaço para o Brasil e para uma sinfonia multilateral mais harmônica. Em um artigo publicado na revista "Política Externa" em 1999, o senhor diz que vivíamos em um mundo ao mesmo tempo unipolar e multipolar, com os EUA como o pólo de poder que rege o concerto dos demais. Isso mudou? Mudou. No livro que acabo de lançar existe outro artigo em que discuto de uma perspectiva diferente a organização dos pólos de poder hoje. Uma das coisas interessantes em relações internacionais nesses últimos anos é a rapidez com que se deram transformações. Para usar a sua terminologia, a mudança foi de um "concerto pobre", com grande predominância do pólo americano, para um "concerto rico", ainda regido pelos americanos, mas com maior participação internacional? Ou os EUA estão perdendo a posição de maestros? Ainda é difícil fazer previsões, salvo o fato de que teremos um mundo mais complexo que o da Guerra Fria, em que você tinha dois pólos, ou mesmo que o dos anos 90, quando se imaginou um cenário unipolar ditado pelos EUA. O que é mais provável - e todos os analistas coincidem mesmo antes dessa crise financeira - é que teremos mais atores na quadra do jogo internacional. Os EUA continuarão importantes como a Inglaterra continua. Rússia, China e Japão, também. E certamente Brasil, Índia, África do Sul entrarão no jogo. Estamos vivendo essa transição. O prefácio de seu livro diz que ele foi escrito em um contexto de "crise do multilateralismo, em grande parte por obra e graça das ações unilaterais do governo Bush". O jogo mudou? Uma das coisas que se pode extrair do episódio no Iraque é que, apesar de a ONU não intervir no processo, o padrão de legitimidade quem deu foi ela. Se os EUA invadiram o país de maneira unilateral, e isso foi criticado, levando a um desprestígio dos norte-americanos, foi porque você tinha uma alternativa de comportamento desenhada pela ONU e essa alternativa não foi seguida. A ONU tem muita força como geradora de padrões de legitimidade - e esse é um dos temas principais do meu livro. Tanto que a primeira medida dos EUA após a intervenção foi buscar auxílio da ONU para organizar o Iraque pós-invasão. Nas últimas semanas, falou-se muito em crise de liderança. Bush pareceu perdido em comparação ao primeiro-ministro britânico Gordon Brown, por exemplo. Da crise pode sair uma Europa renascida, com mais influência nas decisões globais? A liderança tem que aparecer no momento em que se tem desafios. Agora há um grande desafio e a qualidade do argumento do líder é essencial: entender a situação e elaborar um plano que seja convincente, porque sobretudo em uma situação como essa qualquer movimento tem que ter legitimidade. E legitimidade significa o quê? Respaldo, apoio, aceitação. Há líderes que nascem de uma visão, de uma vontade de mudar o mundo, como o Dag Hammarskjöld (diplomata sueco que foi secretário-geral de 1953 a 1961), no caso da ONU, ou do (general Charles) De Gaulle, na França. No momento não é disso que se trata: precisamos de líderes que saibam reagir especificamente a esse tipo crise. O enfraquecimento dos EUA fortalece a visão multilateralista? Qualquer pessoa que anos atrás fizesse previsões sobre como se desenvolveria o sistema internacional iria apontar para isso: certamente o unipolarismo americano não iria persistir, se é que existiu algum dia. As tentativas que os americanos fizeram de impor seu poder não foram propriamente bem-sucedidas. Pelo contrário, deram a idéia de que aquele poder tinha limites. Então os EUA terão que cooperar, seja na área de segurança, de meio ambiente ou dos direitos humanos. O Brasil deve continuar apostando na aproximação com outros países emergentes neste momento em que a economia global parece tão dependente deles? Acho que sim. O G-20, que é uma criação brasileira, foi muito importante em Doha, deu outro sentido à negociação. O Brasil está tentando também, e acho que pode ser muito positivo, uma aproximação India-Brasil-África do Sul (Ibas). Temos participado de forma mais ativa do G-8. E o Mercosul e a Unasul podem ter papel relevante. Frentes para a nossa diplomacia não faltam. A crise é uma janela aberta então? O que aconteceu vai forçar as pessoas a olhar para os fundamentos, para a própria maneira de se ver as finanças internacionais. Isso tem peso. Eis a lição que se pode extrair desses últimos anos: é importante cooperar e buscar regras. Os Estados têm interesses, alguns muito próprios e conflitantes. Mas você pode se fechar neles ou tentar encontrar um ponto em que os interesses sejam "multilateralizados". O Brasil tem feito a sua lição de casa na ONU? Desde que a ONU foi criada sempre tivemos uma postura muito ativa. O que significa isso? A primeira coisa é destacar parte do seu capital diplomático para acompanhar esses assuntos nas missões em Nova York, Genebra, Nairóbi. A segunda é usar tais organismos para propor idéias e levá-las adiante. Isso sempre aconteceu com o Brasil na ONU. Agora mesmo o presidente Lula lançou uma iniciativa de combate à fome e à pobreza. Há um terceiro elemento, que é nossa fidelidade aos princípios da casa. Não adianta ser ativo e ter propostas se quando elas o incomodam você as esquece. E nós temos um histórico impecável de fidelidade aos preceitos da ONU. Haverá reforma do Conselho de Segurança da ONU? É legítimo o pleito do Brasil de participar dele? A idéia de reforma é universal e tem clara legitimidade. É muito difícil que um Conselho de Segurança nascido no fim da 2ª Guerra Mundial, em 1946, 1947, possa ser representativo em um mundo que não tem mais nada a ver com aquele. E, pelas dimensões do Brasil, pela nossa fidelidade e tradição multilateral, somos um candidato mais do que natural à condição de membro permanente. A atuação brasileira no Haiti legitima o País ou veio atender os interesses norte-americanos, como dizem alguns? Todas essas missões da ONU, e o Brasil participou de muitas, são uma contribuição ao processo de paz. Você se lembra de como era o Haiti antes da missão brasileira chegar? Havia uma guerra civil permanente. Do ponto de vista do povo haitiano, melhorou, houve eleições, a missão brasileira cumpriu seus objetivos. Se isso foi uma homenagem generosa aos direitos civis ou um serviço aos americanos, pode ser relevante para quem quer interpretar - não do ponto de vista da população. O esforço de construção do Mercosul e o discurso da integração Sul-Sul é boa política? Acho que é importante e já demonstrou isso. O Mercosul, historicamente, serviu a muitos objetivos. Desde os mais imediatos, de aumentar nosso comércio com os vizinhos, até a distensão que promoveu no Cone Sul e em toda a América Latina. Sou do tempo em que havia muita rivalidade entre Brasil e Argentina. Não tínhamos mecanismos permanentes e consistentes de diálogo. As primeiras reuniões de que participei nos anos 70 eram complicadíssimas. Não havia nenhuma intimidade burocrática com os argentinos, como hoje existe. E isso é um grande feito. E os conflitos que tivemos com a Bolívia, por causa do gás, e com o Equador, que expulsou a Odebrecht e ameaça não pagar financiamentos do BNDES? Põem o bloco em xeque? Quando você lida com relações internacionais, divergências de opinião fazem parte do cotidiano. Qual é o ganho que instituições como o Mercosul e a ONU trazem? Elas criam mecanismos para que esses conflitos sejam conduzidos e resolvidos de forma institucional. É a questão da própria democracia: você não tem como evitar o conflito, mas pode prever a forma de solução. Isso dá estabilidade ao processo político. Falando em democracia, estamos às portas das eleições presidenciais nos EUA. Entre Obama e McCain, há quem diga que os democratas são mais protecionistas que os republicanos - o que seria desvantajoso para o Brasil. O senhor concorda? O Brasil tem uma relação muito forte, complexa e diversificada com os EUA. E a verdade é que nunca li um estudo acadêmico que demonstre essa relação entre protecionismo e democratas e não-protecionismo e republicanos. Veja que o Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), que muita gente vê como uma iniciativa de abertura, começou com Bush-pai e Clinton completou. Quais são as oportunidades e os riscos para o Brasil no mundo de instituições multilaterais reforçadas que vem por aí? Em primeiro lugar, o País tem que manter participação ampla em todos os processos multilaterais. Tantos temas estão em aberto que vamos precisar de grande esforço diplomático para fechá-los. Isso vale para as mudanças climáticas, para as questões de direitos humanos, para a reforma do Conselho de Segurança. Teremos uma agenda multilateral mais dinâmica e aberta após a eleição americana, seja qual for seu resultado. Um dos grandes problemas dos EUA hoje, tratado inclusive na campanha, é sua reinserção no mundo e uma nova maneira de encarar as instituições multilaterais. Como o discurso político vai se converter em negociação com essas instituições, não se sabe. É preciso esperar.  

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