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Álcool não vai tomar espaço de alimentos, diz especialista

Para Adriano Pires, professor da UFRJ, discussão é antiga, mas mercado vai conter avanço do etanol

Por Monica Manir
Atualização:

Como bom evangelizador do etanol, o presidente Lula fez sua pregação na abertura da 62ª Assembléia-Geral da ONU. Diante de representantes de 192 países, afirmou ser totalmente possível agregar biocombustíveis, preservação ambiental e produção de alimentos.   Era o efeito-rebote das críticas recebidas especialmente de Hugo Chávez e Fidel Castro, que condenam o uso de áreas de lavouras para plantio de cana e outros vegetais usados na produção de álcool combustível. O professor Adriano Pires, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é fiel seguidor dessa doutrina. Entende que somos um país abençoado por terras cultiváveis e a cana-de-açúcar não vai encolher o prato do povo.    "O mercado, por si só, vai regular esse avanço", afirma. Por isso, por botar fé no poder do mercado, alerta para a intenção do governo de controlar a produção, a exportação ou mesmo a criação dos alcooldutos.   "O etanol é uma commodity agrícola, não podemos confundi-lo com o petróleo." A seguir, esse especialista em infra-estrutura abre um cardápio de reflexões e desafios sobre nossa fonte mais promissora de energia. Em discurso na Assembléia-Geral das Nações Unidas, o presidente Lula afirmou veementemente que a produção de etanol não deve prejudicar o cultivo de alimentos. Ao mesmo tempo, teme-se que os preços internacionais de grãos decolem, piorando a condição de vida dos pobres. Em qual dos prognósticos o senhor aposta? Essa discussão de que o cultivo de cana vai roubar espaço dos alimentos é antiga. Vem desde o lançamento do Pró-Álcool em 1975, quando ainda se misturava álcool anidro à gasolina, e se acentuou a partir de 1979, quando passamos a ter veículos que usavam exclusivamente o álcool hidratado. Dizia-se que o álcool tomaria espaço de plantações de arroz, feijão, etc. Nada disso aconteceu no Brasil. Ocorre que, com esse boom do biocombustível no mundo, em particular do etanol, a discussão volta em escala planetária, mas acho que é uma discussão equivocada. Por quê? O etanol não vai substituir o petróleo, a grande energia do século 20. O petróleo é usado em carros, aviões, na geração de energia elétrica das indústrias, enquanto o etanol está no mercado para substituir parcela da gasolina - que, aliás, tende a diminuir sua participação na matriz mundial de combustíveis. No Brasil, por exemplo, houve uma retração de seu consumo. A partir de 2000 ela perdeu espaço não só para o álcool, mas também para o diesel e o gás. Em nível mundial, imaginamos que perderá ainda mais. Veja o que Bush anunciou: até 2017, cerca de 20% da gasolina será substituída por biocombustível etanol. Se o álcool tende a substituir a gasolina, isso não implica muitos alqueires plantados com cana? A produção brasileira de álcool este ano foi de 16 bilhões de litros. A expectativa é de que, para 2020, fique entre 30 e 45 bilhões de litros. Vamos mais que dobrar a produção. Obviamente, para isso, é necessário aumentar o plantio, mas temos muita terra produtiva no Brasil abandonada ou mal aproveitada. É ela que tende a ser usada nessa expansão da cana-de-açúcar, mínima em relação às terras agriculturáveis no Brasil. Até chegar àquele momento de invadir propriedades que produzem alimentos, o mercado já se auto-regulou. Não chega lá. Temos essa folga. E quanto às pastagens tomadas por canaviais? Os bois podem ocupar a Amazônia? O Estado precisa estabelecer regras que devem ser obedecidas tanto pela indústria canavieira como pela indústria do gado. Tem de estipular que, a partir de certo limite, determinada faixa de terra não pode ser invadida nem por uma nem por outra. Agora, o que está confundindo a cabeça das pessoas é dizer que a Amazônia será um grande pasto porque se subentende que o etanol vá substituir o petróleo. Repito: não vai. Mas o governo tem condição de fiscalizar esses limites? Há municípios do Centro-Oeste criando legislações para não deixar que a cana entre ali de forma ostensiva. Isso é um direito que o poder local tem e deve ser exercido. O poderio dos grandes usineiros tende a esgarçar as regras? O maior poderio do usineiro é a rentabilidade do negócio. E o etanol virou um grande negócio. Por isso todo mundo corre para lá. Mas, com o aumento da produção, os preços começam a cair e passa a sair gente do setor. Quem ia fazer usina já não faz. Toda vez que se está vivendo um grande boom de um produto, o mercado fica meio desconjuntado. Depois a tendência é de arrumação. Qual é o papel da tecnologia nessa arrumação? Tenho muita crença na tecnologia. Diante de desafios, as soluções aparecem. Várias vezes ouvimos que o petróleo vai acabar. Quando a questão parece definitiva, o preço aumenta e viabilizam-se novas tecnologias de extração. No caso do etanol, por um hectare de cana plantada, começamos a produzir mais litros de álcool. O que é a hidrólise? É pegar o bagaço da cana e fazer mais álcool ainda. Hoje existem mudas mais apropriadas para certos climas. A velocidade do avanço tecnológico será maior na medida em que mais países se mostrarem interessados pelo etanol. O etanol tem potencial para o mercado externo? Outros países começam a entender que o etanol propicia mais segurança energética e melhora o ar inspiradonos centros urbanos Ele vai crescer mundialmente. Brasil e EUA, juntos, produzem 70% do etanol, praticamente metade cada um, com a diferença de que nosso custo de produção a partir da cana é três vezes menor que a produção proveniente do milho americano. A tendência é diluir isso. Se pegarmos países da África e da América Latina, o que existe de terra agriculturável não ou mal utilizada é uma quantidade enorme. Mas a tendência são matrizes energéticas diversificadas, com cada região aproveitando sua vantagem comparativa. Há quem prefira investir em outros biocombustíveis. Defendo que o grande mercado do etanol será o brasileiro, mesmo porque ele tem efeito positivo na balança comercial. Os investidores brasileiros vêm sendo fustigados pelos estrangeiros? A indústria sucroalcooleira no Brasil sempre foi 100% nacional. Isso cria certos problemas lá fora, um protecionismo econômico não muito bem-visto. Os países desenvolvidos não gostam que nações como o Brasil se mostrem de ponta tecnológica. Mas a indústria de etanol brasileira é a número 1. Temos condições de fabricar cerca de 50 usinas por ano, mas há que se tomar cuidado para não perder essa dianteira. Até recentemente, 5% da produção de álcool no Brasil era de capital estrangeiro. Hoje chega a 10%. Esses grupos, quando não compram usina pronta, investem em usina zero quilômetro, mas todas fabricadas aqui. Têm que comprar tecnologia brasileira, que é a melhor. Acho que isso incomoda muito, cria essa reação de que o álcool vai prejudicar a produção de alimentos. Como armazenar tanto etanol? O etanol é uma commodity agrícola. Portanto, há o período de safra e de entressafra. O grande problema atualmente é que, quando a safra é boa, o preço vai no chão e o usineiro tem rentabilidade baixa. Na entressafra, o preço do álcool sobe demais da conta. Ficamos no elevador, indo direto do último andar para o térreo. Um dos mecanismos para diminuir essa volatilidade seria estocar álcool na entressafra. Não dispomos desses estoques de maneira efetiva. De que forma faríamos isso? Deveríamos incentivar um maior volume de vendas de etanol na Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F). Fazer mais contratos de longo prazo. A legislação brasileira só permite negociar etanol com o produtor, a distribuidora de combustível e o posto revendedor. Eu, Adriano, não posso comprar etanol. Se estimulassem a compra de papéis de álcool, como os contratos de petróleo que circulam na Bolsa de Nova York e Londres, criaríamos uma espécie de estoque para diminuir a volatilidade. O governo também poderia obrigar as distribuidoras a fazer um estoque por dois, três meses. Hoje elas vendem ao posto revendedor imediatamente. O governo deveria ser mais incisivo no controle da produção? Nos últimos meses, o governo se mostra desejoso de criar uma regulamentação para o álcool no Brasil intervindo nas exportações, na autorização para construir usinas, no controle da produção. Isso me preocupa muito. O etanol é uma commodity agrícola como outra qualquer. Não pode ter controles rígidos do governo, vai haver distorções. Tem de deixar o mercado se regular. Claro que a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) precisa controlar a qualidade, mas não podemos confundir etanol com petróleo. Petróleo é uma concessão, é um bem da união. O álcool é um combustível que vem da cana. O grande desafio é elaborar um Plano Nacional de Combustível. Se a produção de etanol vai crescer tanto assim, o que acontecerá com a gasolina? E com o diesel? A Petrobrás quer transportar o produto. Quais as vantagens e desvantagens disso? A Petrobrás é a maior empresa de energia do Brasil e da América Latina. Quando entra num setor, a tendência é que o domine pela própria grandiosidade e pelo seu poder de empresa estatal. Vemos declarações de que construirá toda uma logística para transportar o etanol por meio dos alcooldutos e investirá em algumas usinas, com os japoneses, para garantir a exportação para o Japão. Dada sua história monopolista, pode tornar refém dela todo o setor privado envolvido na indústria sucroalcooleira. Qual seria a opção? Ela poderia fazer os alcooldutos em parceria com os usineiros, em parceria com fundos de pensão. Como todos os dutos, esse é um negócio de baixo risco e rentabilidade garantida, um tremendo investimento. A mecanização é a saída para o trabalho escravo nos canaviais? Se olharmos as condições de trabalho de hoje e aquelas da década de 60, muita coisa melhorou. Naquela época, o corte de cana era totalmente manual. À medida que cresceu a participação do álcool na matriz de combustível e sua rentabilidade aumentou, começaram a mecanizar. Haverá desemprego? A mão-de-obra se desloca para outros setores. Com o crescimento econômico dado pela mecanização, começa a crescer ali uma indústria imobiliária, uma indústria hoteleira. Só não podemos defender a mão-de-obra escrava, mesmo porque a Europa só comprará etanol daqui a uns anos se o produto tiver um selo confirmando que não houve exploração de trabalhadores. Em que pé estamos na produção de biodiesel a partir de mamona, soja, dendê, girassol? O programa do biodiesel é um problema hoje porque o governo partiu de uma base errada. Misturou política social com política energética. Propôs fazer biodiesel a partir de pequenas propriedades, assentando as famílias no campo. Mas a produção de energia exige um mínimo de escala. Por que a cana é plantada em grandes extensões? Para reduzir custos, basicamente. O governo também errou a mão achando que iríasmos fabricar biodiesel a partir de uma série de produtos agrícolas. Na realidade, mais uma vez, qual é o produto do qual se obtém mais biodiesel? A soja. O brasileiro já está convencido de que o etanol seja um produto interessante para consumo? Acho que parcela dos brasileiros não está, não. Houve percalços na história do etanol no Brasil. No final da década de 80, muita gente foi ao posto abastecer o carro e não tinha álcool. Vendeu-se a imagem de que o álcool não é um combustível tão bom quanto a gasolina, que o carro a álcool demora muito a pegar, que gasta mais. Essa má impressão está sendo revertida com o carro flex, cuja maior vantagem é a seguinte: se não tiver álcool, você bota gasolina. Não se fica na mão. O presidente anunciou, para 2008, uma conferência internacional sobre combustíveis vegetais. Isso poderá elevar o moral da tropa a favor do etanol? Uma conferência do tipo é importante para discutir o porquê desse boom, para onde vai a produção, qual será o papel do etanol como combustível, quais as vantagens e desvantagens. É muito importante fazer um balanço de perspectivas do setor. E tem de ser no Brasil.

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