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Além da condescendência

Passado o esforço pelo politicamente correto, chega a era de uma solidariedade natural com os atletas paraolímpicos

Por Hans Ulrich Gumbrecht
Atualização:

Pistorius, ouro nos 400m, ganhou também status de 'cool'. Foto: ReutersUma pessoa de classe média, de nível de instrução razoável em qualquer país do mundo, que goste ou não de esportes, saberá instintivamente como se relacionar com o esporte paraolímpico e como falar dele. Ou, para ser mais exato: saberá instintivamente que palavras e que atitudes evitar para não ter problemas, se o assunto vier à tona. Ela dirá que apóia de todo o coração (e não "apaixonadamente") o esporte praticado por portadores de deficiência e os eventos em torno dele (bem como o dinheiro gasto com isso); dirá que admira muito o que esses atletas fazem; pode ser até que fale deles de um modo radicalmente "igualitário", dizendo se tratar de pessoas com "habilidades diferentes", e não de "deficientes". Ninguém irá contrariá-la. Por outro lado, ninguém jamais acreditará que ela está dizendo realmente o que pensa (muito menos prestará atenção ao que diz). É possível, nesse caso, que não falte certo sarcasmo na forma como o portador de deficiência encara essa pessoa. O comportamento politicamente correto é a maneira adequada de "se safar" quando alguém, "do nada", faz um comentário sobre a Paraolimpíada numa conversa e você não sabe o que dizer. No entanto, o politicamente correto se esgota aí. Talvez você queira tentar o próximo nível de sofisticação dizendo que, não, você não acompanha os jogos porque acha que, em uma cultura como a nossa, que nutre tão visivelmente uma obsessão pela perfeição física, a exibição e a admiração de corpos cuja identidade (e, em alguns casos, cuja singularidade) repousa na falta e na distância intransponível da perfeição, acaba sendo obscena, chocante e verdadeiro ato de discriminação para com os que se encontram em situação bastante desvantajosa por sua condição física. Você talvez tenha visto alguns momentos da Paraolimpíada na TV, portanto sabe como às vezes a coisa é grotesca e como pode ser difícil sufocar a tentação de rir que o faz sentir vergonha de si mesmo. Sem dúvida, esse segundo nível de correção apresenta uma atitude menos repulsiva e hipócrita do que o primeiro, com seu discurso igualitário asséptico e quase compulsório que todos conhecem, mas em que não acreditam. Tenho, porém, a impressão (ainda muito vaga) de que alguma coisa sem precedentes aconteceu na cobertura que os meios de comunicação fizeram neste ano dos esportes disputados por portadores de deficiência, algo que talvez supere o "segundo nível de atitude" que, por enquanto, tem sido a reação menos desprezível possível. No cômputo diário, foi maior o volume de informações dado pela mídia sobre cada atleta e seus diferentes handicaps, bem como sobre os eventos dos quais participaram. Um número surpreendente de fãs do esporte sentiu-se orgulhoso, pela primeira vez, de "seus" atletas paraolímpicos (isto é, "dos atletas do seu país"). Oscar Pistorius, o velocista sul-africano que desde a infância se desloca com duas próteses acopladas ao corpo, tornou-se ícone mundial, alguém cujas realizações suscitaram admiração praticamente unânime, e cujos direitos e possibilidades provocaram debates acalorados. Alguma coisa mudou realmente, e de um modo muito profundo. O tom é diferente, sem dúvida, e muitos de nós - de repente - passamos a nos sentir solidários com os atletas portadores de deficiência, mas uma solidariedade que não temos de pôr para funcionar, como um motor velho e teimoso, à base de argumentos tediosos e de condescendência moral. Oscar Pistorius, o protagonista global, é um sujeito "cool", tão "cool" que quase foi parar em um pôster quando minha universidade organizou recentemente um colóquio internacional cujo tema era "O futuro dos esportes" - embora, no fim (espero que pela última vez) a política do politicamente correto tenha prevalecido, já que os organizadores escolheram a imagem de uma bela jovem para figurar no pôster. Contudo, embora ninguém duvide de que alguma coisa mudou, e o que mudou pode ser sintetizado em uma nova atitude em relação aos corpos dos atletas paraolímpicos, não se sabe de modo algum por que essa mudança ocorreu. Em alguns casos, os para-atletas parecem ter conquistado a admiração de um número considerável de espectadores. Bom exemplo disso é o basquete em cadeira de rodas. Basta ver o jogo para se dar conta de que há ali uma arte que vai além do concebível, como no basquete da NBA. Você sente que a disputa é acirrada e até fisicamente feroz, como no hóquei sobre o gelo no Canadá ou na Rússia. Percebe-se também o tempo todo uma qualidade que o futebol só exibe de vez em quando: uma enorme velocidade. Às vezes, penso que seria interessante, e também um bom desafio para qualquer atleta, jogar basquete em cadeira de rodas. Será que esse tipo de identificação seria uma "atitude correta"? Gostaria de pôr de lado aqui toda e qualquer forma de superioridade moral, mas talvez haja uma coisa que pudesse ser aceitável no futuro: fazer com que atletas não deficientes participem de pelo menos alguns dos eventos que ainda associamos exclusivamente aos atletas portadores de deficiência. O basquete de cadeira de rodas seria um bom candidato. Afinal, sempre houve esportes cujos movimentos e exigências, como os requeridos pelo basquete de cadeira de rodas, nunca foram totalmente "naturais". É o caso da marcha atlética, por exemplo, ou de todos aqueles movimentos "naturais" vedados aos atletas nas lutas ou no vôlei. Por que não admitir que você tem vontade de arremessar uma bola na direção da cesta sem tocar o pé no chão - embora ele estivesse em perfeitas condições para isso. A possibilidade de imaginar um futuro desses talvez seja uma razão para mudarmos de atitude em relação ao esporte para portadores de deficiência - e vejo como essa possibilidade tem crescido espontaneamente nos meus quatro filhos (com idades entre 17 e 30 anos), como em muitos dos meus alunos. Além disso, o fascínio pelos corpos híbridos começa a tomar conta de nós. O estilo de corrida de Oscar Pistorius, em razão de suas próteses - e não apesar delas -, tem uma elegância peculiar e encantadora. Uma elegância que talvez não esteja muito distante do piloto de Fórmula 1, cujo corpo se une ao corpo do carro - ou da forma dos pilotos das primeiras décadas da aviação, que pareciam ter sido gerados juntamente com suas máquinas, espécie de centauro da mitologia greco-romana. Se não for esse o futuro para o qual estamos rumando, é pelo menos uma idéia utópica que podemos e devemos cultivar. Afinal de contas, quantos de nós hoje, indivíduos da classe média globalizada, vivemos sem pelo menos uma parte artificial em nossos corpos? As próteses de Pistorius são apenas mais visíveis - e muito mais bonitas - do que a coroa que trazemos no dente. * Hans Ulrich Gumbrecht é professor de literatura na Universidade de Stanford e autor de Elogio da Beleza Atlética (Cia. das Letras)

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