Além das grades

Bandido bom não é bandido morto, mas aquele que consegue mudar de vida, diz filósofo

PUBLICIDADE

Por Fernando Luís Schüler
Atualização:
PRESIDIO8 SAPE PB VIOLENCIA/PARAIBA EMBARGO MATERIA ESPECIAL SOBRE O AUMENTO DA VIOLENCIA NA PARAIBA. Fotos exclusivas de presos em celas no presidio Regional do Sape. Materia sobre os dados de homicidios no Brasil e sobre a epidemia de homicidios em Joao Pessoa PB. 05/ 07/2013 - Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADAO Foto: Dida Sampaio/Estadão

A violência é um fenômeno em declínio mundo afora. Steven Pinker nos oferece, em seu monumental estudo Os Anjos Bons de nossa Natureza, uma avalanche de dados demonstrando esse fato. No entanto, quando ligamos a TV somos bombardeados com imagens que vão do linchamento de uma mulher no Guarujá à barbárie do Isis no norte do Iraque. Quando compramos uma revista nacional, bem editada, com a capa “Brasil, recorde de homicídios”, parece não haver dúvida de que vivemos uma época de explosão de violência. 

PUBLICIDADE

Não é verdade. Nos EUA, por exemplo, a taxa de homicídios caiu 42% desde o início dos anos 1990. No Canadá, a queda foi de 35%. Trata-se de uma tendência global. No Brasil, década a década registra-se uma redução no ritmo de expansão da taxa de homicídios. Ela dobrou nos anos 1980. Na década de 1990, o crescimento foi de 20%, caindo para pouco mais de 2% na primeira década do século.

Isso não nos absolve dos nossos pecados. Ostentamos o nada honroso título de campeões mundiais de homicídios, em números absolutos. Nossa média é de 29 assassinatos para 100 mil habitantes. Há uma Belíndia escondida nesses números. O Brasil do Rio Grande do Sul, São Paulo e Santa Catarina apresenta taxas abaixo de 20 homicídios por 100 mil habitantes, para mais de 60 no Brasil de Alagoas.

Em parte, isso ocorre porque somos uma sociedade tolerante com a violência. Desde Hélio Oiticica, nos anos 1960, com seu poema Seja Marginal, Seja Herói, ode a Cara de Cavalo, bandido e seu amigo, até Caetano Veloso, vestido de black bloc, nossa cultura tem caído no logro de encontrar algum charme na violência. Se ela for praticada sob o manto de algum discurso ideológico, então, o sujeito se arrisca a virar líder de opinião, articulista de jornal ou capa de revista. Black Blocs, no Brasil, têm direito a reunião com ministro de Estado.

Há duas variáveis que podem ajudar a compreender a aceleração e, logo, a redução no ritmo de crescimento da violência no País. Uma delas é a expansão da população urbana. Em 1970, 56% dos brasileiros viviam nas cidades. Em 1990, esse número saltou para 75%. Vinte anos depois, o senso de 2010 registrou que 84% dos brasileiros vivem no espaço urbano. O ritmo de crescimento da violência acompanhou, de modo geral, a expansão da vida urbana no País - uma vida urbana precária, feita de favelização e exclusão étnica, social e territorial.

A outra variável é demográfica. Os crimes violentos têm maior incidência entre a população jovem, masculina, de menor renda, residente nas periferias urbanas. O ritmo de crescimento dessa população, entre os anos 1960 e 1980, foi assombroso. Em meados dos 1960, a taxa de fecundidade média no Brasil era de seis filhos por mulher. Hoje, é de 1,9. Novamente, temos dois Brasis: um nos anos 1960/80, outro nos anos1990/2000. Há muitas razões para a mudança: a ação dos programas de saúde da família, a disseminação do planejamento familiar, a mudança do papel da mulher na sociedade, o aumento dos níveis de informação, as taxas de escolarização.

Se queremos apostar em políticas públicas que reduzam a violência, ofereço uma sugestão: fazer uma reforma estrutural em nosso sistema prisional. Pessoas são privadas de liberdade como punição e para que se reeduquem e voltem a viver pacificamente em sociedade. O Estado tem sido sistematicamente incapaz de atender à segunda tarefa. Em 2012, o CNJ divulgou estudo mostrando que 54% dos adolescentes que cumprem medidas de internação reincidem em atos infracionais. No sistema prisional adulto, calcula-se que o porcentual vá a 70%, na média nacional. 

Publicidade

Nosso primeiro desafio é reconhecer essa situação e romper com alguns preconceitos. Nos anos 1990, nossos políticos descobriram que o Estado era incapaz de administrar, de modo eficiente, empresas como a Vale do Rio Doce, Embraer ou a CSN. Depois, descobrimos que os hospitais públicos administrados em parceria com o setor privado, como no modelo das Organizações Sociais, em São Paulo, ou na Rede Sara Kubitschek, apresentavam resultados muito superiores às instituições gerenciadas segundo o modelo estatal. Recentemente, descobrimos que também os aeroportos eram mal administrados pelo governo e iniciamos um processo - tardio, é verdade - de concessão de terminais aeroportuários.

Não obstante, continuamos a acreditar que o governo possa ser um bom gestor de unidades prisionais. E o fazemos contra todas as evidências disponíveis. Estudo publicado pelos professores Sandro Cabral e Sérgio Lazzarini, a partir da experiência dos presídios terceirizados no Paraná, no início dos anos 2000, demonstrou a superioridade do modelo de gestão público-privada não apenas no tocante à racionalidade de custos, mas também aos aspectos de segurança, saúde e ressocialização dos apenados. A variável determinante para a qualidade dos serviços prisionais não é o volume de recursos aportado no sistema, mas o modelo de gestão, o sistema de incentivos, a accountability da gestão por parte dos operadores do sistema. O Brasil tem todos os instrumentos jurídicos, a começar pela legislação das PPPs, e todas as condições de mercado para avançar nessa direção. Por que não o faz? Será o despreparo de nossa liderança pública? A força e o medo das corporações do setor público? A prevalência de uma cultura política que confunde o público com o estatal? Tudo isso junto? 

No terreno da justiça juvenil, a situação ainda é pior. Em boa parte do País ainda vigora, na prática, o antigo modelo das Febens. Políticos sugerem a redução da maioridade penal como solução para a violência entre os jovens. Ideia curiosa. Imaginamos que distribuir adolescentes infratores de 16 ou 17 anos pelos nossos presídios, Brasil afora, seria uma boa solução. Dou um pequeno testemunho na direção inversa. Em 2008, participei da implantação de um programa que oferecia meio salário-mínimo, durante um ano, e um programa intensivo de treinamento profissional, para jovens egressos das unidades da Fase (o sucedâneo da Febem), no Rio Grande do Sul. O Tribunal de Contas do Estado publicou estudo mostrando que a reincidência em delitos dos jovens participantes do Programa, em 2012, foi de 9,5%, para 45% de reincidência dos internos não participantes. O caminho parece claro. Bandido bom, no fundo, não é o bandido morto, mas o que consegue mudar de vida. E nem é tão difícil assim ajudar para que isso aconteça.

*

Fernando Luís Schüler é curador do projeto "Fronteiras do Pensamento"

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.