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Alguém se habilita?

Doutor Coelho tem uma missão: examinar um por um os corpos recolhidos no desastre da TAM

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"Eu fiquei muito comovido. Muito, muito, muito. A gente sempre fica. Esse número tão grande de vítimas, um Airbus inteiro... Nós temos esposas, filhos, noras, netos, pais. Somos parte disso também. Somos pessoas da população. E tivemos de entrevistar todas as famílias das vítimas, arrancar deles todos os detalhes. Eu não cheguei ao ponto de chorar. Mas me emocionei intensamente. Em alguns momentos tive de parar e ficar em silêncio. Para recompor a postura, pensar um pouco. Quem trabalha no Instituto Médico-Legal tem a exata noção do quanto a vida é débil e fugaz. Como pouca gente, nós sabemos com que rapidez ela desaparece." Ave Maria ter uma profissão como a do doutor Coelho, Deus que nos proteja de ver as coisas que ele já viu. Sobretudo nos proteja do próprio doutor Coelho, que há 33 anos é médico-legista do IML de São Paulo. Desde o desastre com o avião da TAM, ele está à frente de parte do grupo que trabalha na identificação dos 199 corpos recolhidos no local do acidente. Quando a aeronave bateu no prédio, o doutor Coelho estava na sala de espera do dentista assistindo na tevê o programa do Datena. Ligou para o IML prevenindo os colegas de que teriam trabalho. Vendo a "altura absurda" das chamas, o posto de gasolina ao lado da construção, telefonou também para um médico-legista especializado em vítimas de incêndio. Informado de que o avião era um Airbus, "soube exatamente o que acontecia, e que um número enorme de pessoas já estavam carbonizadas". Diante disso o doutor Coelho foi "reparar a obturação que havia se partido". Carlos Alberto de Souza Coelho tem 60 anos. Casado, dois filhos, "caipira da Vila Mariana", onde nasceu, cresceu e mora até hoje. Seu pai é da Ilha da Madeira, seus avós maternos, da região de Trás-os-Montes. "Sou brasileiro de nascimento, português de DNA." Doutor Coelho gosta de se apropriar dos termos da medicina. Para ele não tem trânsito engarrafado - no máximo, "coagulado". Mas não é por uma questão de léxico que "Mister Rabbit, um apelido recente", tem tanto apreço por aquilo que faz. "O médico-legista tem muito a oferecer para o esclarecimento da Justiça. Minha paixão pelo trabalho vem da vontade íntima de prestar um serviço importante." O diabo é que todas as grandes tragédias de São Paulo - as pequenas também - desembocam sempre no doutor Coelho. Há 11 anos, ele trabalhou na identificação dos 99 mortos no acidente com o Fokker 100 da TAM, em que "os corpos estavam muito mais inteiros do que agora". Diretor do IML de Osasco durante 20 anos, esteve na linha de frente em dois episódios que marcaram a história da cidade: em junho de 1996, uma explosão matou 42 pessoas que estavam na praça de alimentação do Osasco Plaza Shopping; dois anos depois, o desabamento do telhado de uma Igreja Universal deixou 25 pessoas mortas. "Escapei dos incêndios do Joelma, do edifício Andraus e dos 111 do Carandiru." Em compensação, doutor Coelho foi um dos responsáveis pela análise dos restos mortais dos Mamonas Assassinas, além de um assistente de palco, um segurança e dois pilotos do Learjet que se acidentou na Serra da Cantareira em março de 1996. "Foram os corpos mais destroçados que eu já vi na minha vida." Tão logo doutor Coelho acabou de obturar o dente, ejetou-se da cadeira do dentista, que afinal vem a ser o seu filho mais novo. Diretor de uma divisão do Centro de Exames, Análises e Pesquisas do IML (dirigiu o próprio instituto em 2000 e 2001), ele ainda estava montando as várias equipes de trabalho quando os primeiros corpos do desastre com o Airbus começaram a chegar. "Não há organismo vivo que tolere uma desaceleração como a que ocorreu com esse avião. Além disso, poltronas e peças da aeronave certamente foram empurrando as pessoas para a frente. Estruturas ósseas, músculos e tecidos ficaram misturados a pedaços de metais e plástico. O impacto matou os passageiros de forma imediata, ou lhes tirou completamente a consciência." Na noite do acidente, doutor Coelho trabalhou até 1h30 da manhã. Foi para casa porque "a roupa estava suja e cheirava a corpo carbonizado, que em grande quantidade acaba impregnando". Ele deitou mas não conseguiu dormir. Revirou na cama até as 4h. Desistiu e voltou para o IML. Com menos tempo de exposição ao fogo, "os primeiros corpos nunca chegam tão queimados". Depois a situação piora. Nas horas que se seguiram ao acidente, cada corpo recebeu uma pulseirinha com seu número de registro. Foram colocados separadamente em sacos de polietileno, chamados de porta-cadáveres. Depois, para que fosse possível empilhá-los, tiveram de ser acomodados em caixões de madeira. Foram resfriados a 4 graus centígrados, de forma que pudessem ser trabalhados de imediato. Como a câmara de refrigeração do IML suporta no máximo 50 pessoas, quatro caminhões-frigorífico tiveram de ser levados para o estacionamento do prédio - mesmo expediente usado no desastre do Fokker 100. Na análise dos corpos, todos os membros passam pelo raio X, sendo "possível identificar correntinhas, relógios e outros adornos misturados aos fragmentos". Há 250 funcionários envolvidos com a operação de reconhecimento dos mortos, estudados simultaneamente em grupos de seis. "Os corpos estão sujos de terra, sangue e carvão." O primeiro contato do doutor Coelho com "o corpo falecido" foi nas aulas de Anatomia da Escola Paulista de Medicina. Os professores tomavam cuidado "para não impactar os jovens", de modo que iniciavam seus trabalhos "pelo estudo fracionado do esqueleto". No segundo ano de faculdade, o doutor Coelho viu uma pessoa no formol. Mais maduro emocionalmente, no ano seguinte experimentou pela primeira vez o "indivíduo recentemente falecido, com a cor original". No começo "não tinha o pensamento fechado de ser médico-legista". Mas um professor "incutiu" nele essa vontade. Coelho tornou-se doutor em 1973. Passou no concurso para o IML poucos meses depois. "Quando o indivíduo entra para a medicina-legal, já tem anos e anos de necrotério." Em qualquer lugar que o doutor Coelho esteja, ele ouve sempre a mesma pergunta: "Como é que você foi se meter nessa?". Na verdade, o médico-legista trabalha muito mais com gente viva do que morta. Vítimas de estupro, acidentes de trânsito e de trabalho, torturas e outras agressões - as pequenas tragédias de São Paulo correspondem a cerca de 70% dos atendimentos feitos pelo doutor Coelho e seus colegas. Em média, são 60 mil exames envolvendo lesões corporais a cada ano, isso apenas no IML central, "fechado" agora para a tragédia da TAM. Frente a frente com "o corpo falecido", doutor Coelho não pensa "quem foi aquela pessoa, qual era a história dela". Apenas faz o seu trabalho "com extremo respeito". Não raro invoca sua religiosidade de "católico apostólico romano": pede "tranqüilidade, discernimento e calma" - para ele e para o morto. De resto, o IML "é um ambiente de trabalho e não um velório". Debruçado sobre o cadáver, é possível que o doutor Coelho puxe conversa com um assitente: "E o seu filho, como está? A esposa, vai bem? E você, vai fazer o que hoje?". Essa profissão necessária porém horrorosa do doutor Coelho não impede que ele seja uma pessoa surpreendentemente doce. Sua "terapia", por exemplo, "é construir carrinhos de madeira" numa pequena marcenaria que ele montou em um sítio no sul de Minas. É "especialista em caminhão-basculante, carreta e moto-niveladora". Tem um Chevrolet 1937 e um Landau 82. Além de carros antigos e caminhões em miniatura, doutor Coelho gosta muito de rock. "Rolling Stones, Elvis, The Beatles, Ray Conniff." Ray Conniff??? A mulher do doutor Coelho "baixa tudo no e-mule". Doutor Coelho gosta de cachorro. Tem uma cadela de pastor chamada Mie. Tinha três dogues alemães, mas eles morreram. Há 20 dias, faleceu também o Texaco, um vira-lata. No dia 31 de dezembro de 2001, quem quase morreu foi o próprio doutor Coelho. Um infarto fez com que vivenciasse "a iminência da morte". Nada que quatro pontes de safena não tenham dado um jeito. Pelo menos teria sido de acordo com a sua preferência: "Gostaria de ter uma morte súbita e sem violência. Todo o mundo quer ir para o céu, mas nenhum de nós quer morrer. Como essa é uma equação impossível, eu escolheria a morte rápida." Se o doutor Coelho falou, é porque assim é que é bom. TERÇA, 25 DE JULHO Parentes visitam IML Depois de reclamar da morosidade do Institulo Médico-Legal em identificar corpos do acidente da TAM, parentes visitaram o IML. Legistas se emocionaram. Até o fechamento da edição, 95 dos 199 mortos tinham sido identificados, sem a necessidade do exame de DNA.P

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