Annie Ernaux levou anos para escrever sobre aborto em 'O Acontecimento'

Escritora francesa transformou seu trauma em romance visceral

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Por Matheus Lopes Quirino
Atualização:

Annie Ernaux escreveu O Acontecimento como um acerto de contas pessoal. Feminista, a autora se tornou um voz poderosa da literatura contemporânea francesa, espalhou-se pelo mundo depois do sucesso de O Lugar, outro acerto de contas, desta vez com o universo familiar e toda a carga que o cerca. Questiona o papel da mulher na sociedade e se expõe ao partilhar suas experiências mais íntimas.

Em suas narrativas, Ernauxexpõe sua veia confessional, ela traduz o peso do sofrimento num texto esculpido com uma espécie de lança ou canivete. São marcantes suas observações: “Há muitos anos estou às voltas com esse acontecimento da minha vida. Ler o relato de um aborto em um romance me arrebata, num sobressalto sem imagens nem pensamentos, como se as palavras se transformassem instantaneamente em sensação violenta.”, escreve.

Annie Ernaux se tornou uma das escritoras mais célebres da França no século 20, hoje ela inspira as novas gerações que buscam atingir o tom confessional Foto: Ulf Andersen/AFP

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O trauma do aborto acompanhou a escritora por toda vida. Depois do procedimento, por anos, ela teve miragens da “fazedora de anjos”, uma senhora roliça de pele acinzentada. É essa personagem um emblema curioso. Quase como um fantasma, por estar à margem da sociedade, aquela senhora é também o último recurso da protagonista, que está à mercê da própria sorte.

Sem médicos, colegas, orientação ou amigos, o mundo passa como uma vertigem pelos seus olhos. A importância do Acontecimento se revela no périplo da protagonista pelas ruas de Paris onde tudo fica turvo, mesmo quando volta à Universidade de Bordeaux, a cabeça maquina em busca de solução e projeta cenários catastróficos.

Ernaux coloca em xeque qualquer esperança na sociedade dominada por rígidos padrões morais, com o ventre legislado por anciãos de perucas vitruvianas. É curioso notar que, mesmo na França do Iluminismo, já no século 20, a discussão dos direitos femininos fosse um tabu. Ela não encontra nenhum livro ou referência para a guiar naquele momento (sobra para a ‘fazedora de anjos’). “Bem no momento em que eu estava descendo da maca, com meu grande suéter verde caindo sobre as coxas, o ginecologista me disse que com toda a certeza eu estava grávida. ‘Os filhos do amor são sempre os mais bonitos’. Era uma frase horrorosa.”

Com a mesma ponta de lança que é demarcada sua situação de desprezo, Ernaux fez da história um marco para tantas outras mulheres mundo afora, tornando-se a referência que tanto buscou na juventude.

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