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Antologia reúne 250 anos da poesia negra dos Estados Unidos

Obra editada pelo poeta Kevin Young é um tributo à persistência desses autores em lutar por voz e liberdade

Por Parul Sehgal
Atualização:

Em seu comovente ensaio The Difficult Miracle of Black Poetry in America [O Milagre Difícil da Poesia Preta na América, em tradução livre], June Jordan lembrou sua participação como jurada de um prêmio de poesia em meados da década de 1980. Enquanto vasculhava a última rodada de manuscritos, começou a anotar substantivos recorrentes: lua, olmos, lilás, tundra.

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“Dezesseis diferentes manuscritos de poesia escritos no ano de 1985 e nenhum deles usa as palavras da minha vida preta!”, ela notou. Os poetas, todos brancos, escreviam sobre manivelas e gansos da neve, nunca sobre baixos salários ou tiroteios policiais, nunca sobre os eventos globais da época: o apartheid na África do Sul, a fome na Etiópia.

“Não me atreveria e não me atrevi a impor minhas urgências aos poetas brancos que escreviam na América”, escreveu Jordan. Mas ela se maravilhou com a persistência dos poetas pretos, empenhados em escrever sobre a liberdade, mesmo que seu trabalho fosse ridicularizado como algo “típico” ou “panfletário”. “Este é o milagre difícil da poesia preta na América: nós persistimos, publicados ou não, amados ou não amado. Nós persistimos”.

A nova antologia da Library of America, African American Poetry: 250 Years of Struggle and Song [algo como Poesia Afro-Americana: 250 Anos de Luta e Canto], editada por Kevin Young, é um tributo monumental a essa persistência, desde o período colonial até os dias de hoje. O livro apresenta poemas sobre injustiça, assédio, fome – protestos impressos – mas também odes arrebatadoras à música e à comida, ao olhar dos lindos desconhecidos, ao tédio e dores do parto e da menopausa e, sim, à lua, olmos e lilases também.

Young – que vem sendo chamado de “poeta mais ocupado dos Estados Unidos” – escreveu inúmeras coleções de poesia e ensaios e editou antologias de versos sobre luto e jazz. Ele é editor de poesia da New Yorker e diretor do Centro Schomburg para Pesquisa em Cultura Negra da Biblioteca Pública de Nova York. Em janeiro, começará uma nova função como diretor do Museu Nacional Smithsonian de História e Cultura Afro-americana.

Seus muitos empreendimentos estão ligados ao esforço de resgatar do esquecimento, de contextualizar, de indicar pontos de continuidade e, ao mesmo tempo, insistir na multiplicidade das experiências. Uma das conquistas de Young com este novo livro que passou seis anos em composição é trazer à tona escritores menos conhecidos – especialmente escritoras, como Anne Spencer e Mae V. Cowdery, figuras esquecidas do movimento Harlem Renaissance – e questionar por que suas obras desapareceram. Eles nunca publicaram um livro? Viveram numa época, como os anos 1980, de escasso apoio institucional aos poetas pretos? Escreveram de formas trivializadas? Foram forçados a manter sua escrita em segredo?

Antologias podem ser uma barreira contra a obscuridade. Aqui vemos poemas considerados polêmicos demais para a época (poemas de amor arrebatadores de Angelina Weld Grimké, escritos para outra mulher) ou produzidos de maneiras tidas como marginais (rimas de pular-corda de Lucille Clifton, publicadas agora pela primeira vez).

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A poeta afro-americana Angelina Weld Grimké Foto: Domínio Público

Desde as primeiras páginas, a coleção me compeliu a lê-la de um jeito anormal e estranhamente bovino – do começo ao fim. (Todo mundo sabe que a maneira correta é a totalmente aleatória, começando com os favoritos – ou com os inimigos – e depois mordiscando aqui e ali conforme você avança). Mas esses poemas, embora dispostos em ordem convencional – divididos em seções cronológicas, organizadas em ordem alfabética por autor – fazem comentários implícitos uns sobre os outros.

“Eu / sou uma mulher preta / alta feito um cipreste”, escreve Mari Evans no poema I Am A Black Woman. “Olhe / para mim e se / renove”. Na página ao lado, o poema de Sarah Webster Fabio I Would Be for You Rain nos afasta com certo sarcasmo: “Eu seria para você a chuva; / insistente, persistente, ainda / intermitente”. A seca, ela escreve, “tem mãos mais gentis”. Ela é seguida por High on the Hog, de Julia Fields, com sua majestosa indiferença aos apetites e necessidades de qualquer pessoa, exceto aos de quem fala. “Quero os melhores aperitivos”, escreve ela. “Já fui / muito planejada / cortada / E agora quero do melhor”.

São momentos de humor dentro de um livro onde o que manda são as continuidades mais sombrias. Em seu poema de 1989 On the Turning Up of Unidentified Black Female Corpses, Toi Derricotte escreve sobre mulheres negras assassinadas que aparecem em campos e rodovias.

Estou errada em pensar que, se cinco mulheres brancas tivessem sido despidas e espancadas, as sirenes soariam até que alguém fosse responsabilizado?

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Aja Monet atende a este chamado em “#sayhername”: “Sou uma mulher que carrega outras mulheres na boca”, ela escreve. E diz seus nomes: Rekia Boyd, Sandra Bland, Pearlie Golden e outras.

Lido desse jeito, o livro parece um poderoso volume da história americana, no qual poetas, a começar por Phyllis Wheatley, a primeira poetisa preta publicada no país, falam sobre sua época. Aqui vemos o ceramista David Drake, que, numa época em que a alfabetização era proscrita para as pessoas escravizadas, inscreveu em suas obras versos rimados sobre a separação da família sob a escravidão: “Me pergunto onde estão todos os meus laços / Amizade para todos – e todas as nações”). Aqui também vemos o nascimento do jazz, o julgamento de Scottsboro, o assassinato de Emmett Till, a Guerra do Vietnã, o assassinato de Malcolm X, as mortes de Michael Brown, Rekia Boyd e Sandra Bland.

Os poetas falam diretamente à América. Em 1853, James M. Whitfield escreveu: “América, isto é para ti, / Tu te vangloriaste a terra da liberdade, / É a ti que elevo a minha canção, / Tu, terra de sangue, crime e injustiça”. E os poetas também falam uns aos outros. Um dos aspectos mais comoventes da antologia é ver os escritores das primeiras seções – Langston Hughes, Paul Laurence Dunbar, Gwendolyn Brooks, June Jordan – virando ancestrais queridos, tornando-se ocasião para poemas das seções seguintes.

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A antologia soa como uma forma de história, mas é também uma história da forma. Traça os afluentes das tradições inglesa e folclórica, os ritmos do jazz e dos beats, a influência do modernismo e do Black Arts Movement. Qualquer que seja o estilo, qualquer que seja o formato do recipiente, fica claro o poder de retenção do poema. Com mais eficiência que quase qualquer outra forma, o poema consegue transmitir uma sensação de simultaneidade: o passado pode saturar o presente, o futuro pode surgir atrás de nós, o ânimo pode oscilar entre o lamento e o louvor. O próprio poema se torna um local para discutir os custos de se transformar a luta em canto, como diz Young. Os poetas lutam com a urgência de documentar a violência, mas também se enervam com a compulsão. “Este filme não pode ser sobre a dor preta nem causar dor preta / este filme não pode ser sobre uma longa história de se ter uma longa história de feridas”, escreve Danez Smith em “dinosaurs in the hood”.

Ou então a poeta se move na direção oposta, sentada à janela, contemplando um poema sobre o céu e as nuvens e se detendo, como Nikki Giovanni em For Saundra: “Talvez eu não deva escrever nada / só limpar minha arma / e checar meu suprimento de querosene / talvez não sejam tempos / nada / poéticos”. Em “Wednesday Poem”, Joel Dias-Porter escreve: “abro minha pasta de poemas da natureza, / depois fecho a pasta e afundo na cadeira. / Que símile pode selar um ferimento à bala?”. “Certamente sou capaz de escrever poemas / celebrar a grama”, Lucille Clifton diz e logo se pergunta: “por que / sempre tem debaixo daquele poema / outro poema?”.

Sempre: o poema por trás do poema, o que está em jogo em cada detalhe. É impressionante contemplar a variedade e a história trazidas neste volume. Os poemas aqui reunidos têm a força do acontecimento. Foram escritos como atos de luto público e como segredos; são versos de amor e são lutas amargas. São uma companhia estimada. Ao fechar o livro, June Jordan volta à mente. Talvez se possa dizer o que ela disse para agradecer seu amor em Poem for Haruko: “Com que facilidade você segurou / minha mão / junto à maré baixa / do mundo”. /TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

African American Poetry: 250 Years of Struggle & Song

Editado por Kevin Young

1.110 páginas

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